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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A perigosa desumanização de seres humanos e humanização dos animais

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“Sou um homem: nada do que é humano me é estranho.” – Terêncio


Vi neste domingo o penúltimo episódio da série “Black Mirror”, a mais impactante dos últimos tempos. Aviso que o texto contém um leve spoiler. É sobre um programa militar chamado Mass, implantado nos soldados para que eles vejam os inimigos como animais, monstros, os tais “roaches” (diminutivo de baratas).

Estatísticas mostram que muitos soldados sequer chegam a disparar suas armas em combates, e os que matam adversários costumam muitas vezes demonstrar problemas psicológicos depois. Para que se tornem máquinas assassinas mais eficazes, a ideologia se faz
necessária, tanto o nacionalismo de um lado como a desumanização do inimigo do outro. No caso, a tecnologia veio suplantar essa “falha”.

Não resta dúvida de que, se a própria sobrevivência da civilização está em jogo, como no caso da Segunda Guerra, nós só podemos torcer para que os militares do lado certo matem sem dó nem piedade os nazistas. Somente pacifistas bobocas (e hipócritas) poderiam dizer o contrário. Mas o dilema moral persiste: são seres humanos morrendo, por mais que tentemos vê-los como bichos.

Confira os links abaixo!

E, felizmente, há dentro de nós um lado que se incomoda ao eliminar uma vida humana, à exceção dos psicopatas. Não é jamais uma coisa trivial. Até que, repito, alguma ideologia venha transformar isso, ao longo de muita propaganda e lavagem cerebral, normalmente desumanizando o alvo.

Mais spoiler agora: o soldado que descobre a verdade não consegue mais matar os “roaches” com a mesma facilidade, pois enxerga a pessoa por trás do “monstro”. Mas quando o responsável pelo programa o obriga a remoer as imagens reais em sua cela, ele escolhe a ficção, a fantasia, o programa novamente, para voltar a ver o mundo pela lente tecnológica (ou ideológica). A realidade pode ser muito insuportável mesmo.


Escrevi uma resenha do instigante livro Less Than Human, de David Livingstone Smith, que tem tudo a ver com o assunto e vinha à memória a cada cena do episódio. Eis um trecho:

A desumanização é extremamente perigosa justamente porque oferece ao cérebro os meios pelos quais podemos superar as restrições morais contra os atos de violência. Ao verem comunidades inteiras como sub-humanas, os humanos driblam essa ambivalência e podem, agora, exterminar seus inimigos sem remorso, como quem elimina um germe. O processo de desumanização ocorre em situações em que desejamos agredir determinado grupo, mas somos contidos por inibições morais. Isso se dá num nível emotivo, não estritamente racional.

Como efetivamente conter tais impulsos? O autor não oferece um manual. Ele reconhece que não é algo tão simples assim, que não basta “contar histórias boas”, ignorando a questão sobre nossa natureza humana. Mas sem dúvida em nada ajuda a retórica tribal de “nós contra eles”, que retrata “eles” como bichos tidos como inferiores. As “metáforas” que usamos para descrever nossos adversários como ratos, como insetos, como vermes que devem ser eliminados, não contribuem muito para a vitória da civilização sobre a barbárie. São perigosas, para dizer o mínimo.

Apontemos os erros, os absurdos de nossos adversários. Reconheçamos a monstruosidade de certas ideologias. Ataquemos o comunismo, o socialismo, o nacional-socialismo, o fascismo, o radicalismo islâmico. Mas tomemos o cuidado de não transformarmos seus seguidores em bichos sub-humanos, que precisam ser exterminados. São, apesar de tudo, seres humanos. Apesar de, no mundo moderno que muitos deles ajudaram a criar, talvez seja mais valioso ser considerado um animal mesmo, já que seres humanos estão em baixa na escala de valores.


E aqui acrescento isso: há em curso um esforço crescente de se humanizar bichos ao mesmo tempo que reduzimos o valor do ser humano, tido como a maior “praga” do planeta. Chegará o dia em que a morte de uma galinha despertará muito mais comoção, revolta e indignação do que a morte de milhões de fetos humanos (em alguns círculos “progressistas” esse dia já chegou).

A antropomorfização dos animais, como vemos nos filmes da Disney, turbinada pelo vegetarianismo e a ideologia de Peter Singer, ainda vai tornar o ovo da tartaruga algo mais importante do que o ovo humano, podem apostar. Enquanto isso, vamos banalizando a vida humana, retirando o sagrado dela. 

E não se enganem: o veganismo radical não é apenas elevar o papel dos bichos na hierarquia de valores, mas também diminuir a dos humanos, que deixam de ser especiais. Se somos “apenas diferentes” dos ratos, não somos tão nobres assim.


E isso, lamento dizer, não é exclusividade da esquerda. É triste ver muita gente da direita, inclusive conservadores religiosos, desumanizando bandidos, rindo de massacres horrendos de marginais dentro das prisões, ou então jogando os muçulmanos no mesmo saco podre, como se fossem todos terroristas e, portanto, pudessem ser simplesmente eliminados. São mais de um bilhão de seres humanos, não custa lembrar.

Os “roaches” foram os judeus para os nazistas, os negros ou deficientes para muitos eugenistas (inclusive para aquela que fundou a Planned Parenthood, máquina de abortos adorada pela esquerda), marginais para essa ala da direita, e por aí vai. Claro que há uma grande diferença aqui: bandidos são incluídos nesse grupo por seus atos, não pela cor de sua pele ou sua religião. Ainda assim é importante lembrar: são seres humanos também, ainda que “monstruosos”, e merecem ser severamente punidos por seus crimes, mas sempre dentro das leis e com dignidade.

Quando abandonamos essa postura, é a nós mesmos que estamos diminuindo, é nossa civilização que estamos atacando. Entendo o desejo de ver esses bandidos sendo torturados ou mortos por outros bandidos, ainda mais num país em que a impunidade campeia, mas o freio entre o instinto e a ação é o que nos diferencia deles.

Como tratamos nossos adversários ou mesmo nossos inimigos diz muito sobre nós. É um espelho de nossa alma. Enxergá-los como baratas, como um vírus, pode facilitar no processo de sua eliminação, mas acaba por nos transformar no caminho, por matar algo humano em nós mesmos, algo mais elevado do que apenas nosso lado animal e instintivo. Por isso somos melhores do que os outros animais: pois temos um código de moral e ética.

A esquerda tem tratado com mais dignidade os animais e os marginais, vistos como “vítimas da sociedade”, do que os seres humanos decentes, e isso é um absurdo, algo asqueroso, uma afronta à civilização. Mas não é por isso que devemos cair no outro extremo e passar a tratar alguns seres humanos, por mais equivocados que estejam, por mais monstruosos que pareçam, como ratos ou baratas. Sou mais simpático ao conceito cristão de que toda vida humana é sagrada.

Aqueles que desrespeitam essa regra devem ser punidos, talvez até com a pena de morte. Mas dentro do sistema legal, com o devido processo legal, e de uma forma que não anule a dignidade humana. A era dos linchamentos públicos e das torturas com plateia ficou para trás, ou assim se espera.

Rodrigo Constantino

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