sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ateus querem "se desbatizar"!

Para deixar de fazer parte das estatísticas dos católicos, há quem peça à Igreja para se 'desbaptizar'. Mas como a anulação do baptismo não é possível, a saída passa por renunciar à religião, declarando-se apóstata. O problema é que nem todas as dioceses aceitam passar estas declarações.
A diocese da Guarda, por exemplo, recusa retirar das listas de crentes o presidente da Associação Ateísta Portuguesa (AAP). “O desprezo que tenho pelas religiões, contrariamente ao que tenho pelos crentes, de nada me vale para evitar ser considerado um católico”, queixa-se Carlos Esperança, que está desde Junho a tentar que o bispo da Guarda faça uma adenda ao seu registo de baptismo declarando-o apóstata.

Repor a verdade estatística
“Não faz sentido que, tendo renunciado à religião, ajude a engrossar os números que servem para a Igreja Católica se arrogar como a mais representativa das religiões e ter benefícios como as capelanias militares, onde há padres que são funcionários públicos pagos pelo Estado, que é laico”, explica o presidente da associação, que junta cerca de 300 ateus.

Apesar de garantir ter ajudado já “vários sócios” a lutar para sair das listas dos baptizados, Carlos Esperança assegura que não se trata de um obrigação de quem está na AAP. “Não temos uma vontade de 'converter' ninguém. Não nos congratulamos por alguém conseguir 'desbaptizar-se', mas achamos que, por uma questão de coerência filosófica, isso é o que faz mais sentido”.

De resto, os números mostram que há uma grande disparidade entre o número de baptizados e o número de praticantes. Um estudo da Universidade Católica revela que, em 2012, havia sete milhões de católicos em Portugal - ou seja, 70% da população -, mas apenas 1,8 milhões se afirmavam praticantes. Carlos Esperança acredita que os números são artificiais e cairiam se os não crentes se 'desbaptizassem'. Mas são muito poucos os que o tentam fazer e ainda menos os que o conseguem.

Até hoje, apenas três sócios da AAP conseguiram deixar de fazer parte oficialmente da Igreja Católica. Duas das declarações de apostasia foram passadas pela diocese de Lisboa, ainda no tempo do Cardeal Patriarca D. José Policarpo, e a terceira foi conseguida por uma luso-descendente na diocese de Paris.

“Mas os processos foram sempre complicados e as razões apresentadas variam muito de diocese para diocese”, queixa-se Carlos Esperança, que não entende os motivos para estas dificuldades: “Posso sair de um partido, deixar de ser sócio de um clube, riscar o meu nome de uma base de dados de um supermercado e não consigo deixar de ser católico?”.


No seu caso, o bispo da Guarda entendeu que não era possível alterar o registo de baptismo, porque “todos os arquivos são registos de acontecimentos históricos passados e, como tal, não podem ser anulados nem modificados”.

Fernando Varela, vigário judicial do Tribunal Diocesano de Leiria, explica que “não é possível anular um baptismo”, uma vez que este “imprime naquele que o recebeu aquilo a que se chama, em linguagem teológica, 'carácter', isto é, um sinal indelével que significa, para o baptizado, a regeneração como filho de Deus e a incorporação à Igreja”.

O baptismo 'é como a filiação'
O especialista em Direito Canónico diz que, para se desvincular da Igreja, o apóstata deve declarar formalmente e por escrito, com testemunhas, que “repudia totalmente a fé cristã”, sendo essa declaração averbada ao registo de baptismo.

Manuel Estêvão da Rocha, vigário judicial da diocese de Aveiro, defende, porém, que o processo “é complexo” e deve passar pela audiência de quem faz o pedido. “É importante reunir e falar com as pessoas para perceber os motivos”, defende, explicando que já por duas vezes foi interpelado por Testemunhas de Jeová com este tipo de pedidos, sem que os tivesse deferido. “O baptismo é algo que não se apaga. É como a filiação. Posso não gostar do meu pai ou da minha mãe, mas não os posso renegar”, explica, acrescentando que a excomunhão é possível para quem “renegar publicamente os sacramentos, a fé ou a estrutura hierárquica da Igreja”.

Apesar de se dizer a favor “da depuração das estatísticas”, o padre Estêvão da Rocha admite ter dificuldade em assumir a decisão de deixar alguém abandonar a Igreja: “Quem sou eu para analisar a relação da pessoa com Deus e passar a declaração de apostasia?”.

De resto, as teses divergem sobre se é possível ou não declarar alguém apóstata. Fernando Varela garante que, “estando em causa a defesa da liberdade das consciências, que é um direito fundamental de todo o ser humano e cidadão, a declaração de apostasia é a forma que melhor salvaguarda a pessoa interessada para afirmar esse mesmo direito e defendê-lo e, ao mesmo tempo, salvaguarda a Igreja como instituição de direito”.

Bento XVI mudou a lei
No entanto, em resposta a um pedido de um ateu da AAP, a diocese do Porto assegura que “o Direito Canónico foi alterado e já não permite o 'abandono da Igreja por acto formal'“.
No documento, a que o SOL teve acesso, o vigário António Coelho de Oliveira recorda que Bento XVI alterou os cânones em 2009, para voltar à máxima “católico uma vez, católico para sempre”. Por isso, para alguém ser apóstata, teria de ser excomungado, “com uma condenação por um tribunal eclesiástico de três juízes”. Sem provas de que o requerente, que se declara ateu, tenha abandonado a fé, o vigário deixa a questão “para o juízo de Deus”.

margarida.davim@sol.pt

Sol Portugal

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