sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A rejeição da Escritura como fundamento epistemológico e a resultante confusão de termos


Por Paulo Ribeiro

Como pressuposicionalista eu defendo que, a não ser que o cristianismo, com todas as suas implicações, seja adotado integralmente, o conhecimento não é possível, em qualquer área. Por consequência, nenhum raciocínio lógico poderia ser empregado sem as premissas bíblicas pois só elas possibilitam e justificam a existência da razão, e amparam a ideia de ordem e continuidade no universo e na mente. Com efeito, essas condições para o conhecimento e para a lógica não são percebidas pela avassaladora maioria das pessoas, obviamente. É triste que até mesmo uma grande parcela de cristãos pense diferente ou não concorde com a absoluta necessidade das premissas bíblicas para que qualquer conhecimento seja possível. 

Entretanto, uma das consequências da rejeição da Bíblia como fundamento epistemológico é mais facilmente identificável, ao menos para os cristãos: a impossibilidade de definirmos muitos termos empregados cotidianamente pela maioria das pessoas. Palavras que portam conceitos densos como "amor", "justiça", "Deus", "ciência" e "mal", por exemplo, tornam-se COMPLETAMENTE desestruturadas, amorfas e desamparadas de sentido quando utilizadas em detrimento da Palavra de Deus.

Nesta reflexão, enfocarei o amor. A Bíblia fala no amor de Deus por ele mesmo (amor ad intra), no amor de Deus pela obra de suas mãos (amor ad extra) e no amor de Deus por seus eleitos, que se enquadra no amor ad extra, porém, de uma forma redentiva. Há também o amor das pessoas umas pelas outras, pela criação divina, bem como há o amor do cristão pelo próximo, por seu inimigo e por Deus. Definitivamente foge aos nossos propósitos, neste momento, investigar o amor na Bíblia empregando análises etimológicas. O que nos interessa é observar, partindo de uma perspectiva ontológica, a definição última de amor, segundo a Escritura nô-la fornece; e a Bíblia diz que "Deus é amor" (1Jo 4.8). 


Desconsiderando momentaneamente todas as implicações desta afirmação da Escritura, concentremo-nos no simples fato de que a Bíblia nos fornece uma definição de "amor". Na verdade, a Bíblia vai muito além de definir o amor; ela revela a propriedade metafísica do amor. Deus não "tem" amor, ele "é" amor. O significado disso é que tudo o que o ser humano concebe por "amor" (seja como sentimentos, seja como ações, ou seja o que for), não é amor senão como um eco do verdadeiro amor, que integra a natureza divina como uma de suas perfeições, sendo, por isso mesmo, tão eterno quanto à própria divindade. Deixe-me colocar isso de outra forma. 

Se a Palavra de Deus é eterna como é o próprio Deus (Is 40.28), então tudo deve ter tido origem nele. E se tudo teve origem nele (Gn 1.1), dele somos criação, e empregamos o termo "amor" em nosso vocabulário, então não podemos arrogar para nós mesmos o direito de manipular um termo de autoria divina, e que só tem sentido dentro da definição que o próprio Deus outorgou a ele. Assim, se o amor É uma propriedade de Deus, então ele NÃO É outra coisa e NÃO É o que nós queremos que ele seja. Nós podemos usar o termo "amor" somente nos parâmetros e nas aplicações permitidas pelo que não "tem" amor, mas É amor.

Frequentemente empregamos a palavra amor em nossa vida. Dizemos que amamos nossas esposas, filhos, amigos, animais de estimação etc., mas jamais poderemos entender o amor conforme nossa própria mente o definir pois o amor é eterno ("Deus é amor...") e já era antes que tudo fosse criado. Então, somos encorajados por Deus para que o amemos e para que exercitemos este amor para com próximo. 


Na verdade, somos chamados até mesmo a amar aos nossos inimigos, conforme pontuei em outro texto. Mas nunca fomos autorizados a alterar a definição de amor! Por exemplo, se eu, na prática, resolvo amar a meu inimigo, eu não posso, com base em suposições fúteis a respeito do que significa amar o inimigo, empreender um esforço para conciliar nossos ideais e valores; ou mesmo tentar "sentir coisas boas" por ele. 

A Bíblia diz que os cristãos têm a mente de Cristo (1Co 2.16) e que o incrédulo é tolo (Sl 14.1). Não há o que ser conciliado. Sendo assim, eu não devo utilizar a palavra "amor" independentemente de sua definição original, e eu não deveria amar meu inimigo segundo o que EU entendo por "amor ao inimigo". Antes, eu devo definir o amor segundo os usos e definições do que detém sobre ele os direitos autorais.

Este é o ponto. Ao abrirmos mão da Escritura como alicerce para o conhecimento, sujeitamo-nos ao mais pernicioso relativismo: a definição de amor ficaria por nossa própria conta e poderíamos defini-lo da maneira que mais nos agradasse. De fato, poderíamos sustentar inúmeras definições distintas para o amor, caindo, então, na impossibilidade completa de termos qualquer definição e, por extensão, qualquer conhecimento.

Isso parece um cenário terrível, não é? Não obstante, vivemos uma versão deste cenário em nossos tempos. O maciço abandono dos pressupostos bíblicos e a crescente hostilidade às heranças éticas e culturais do cristianismo (como consequências do apelo histérico à "laicidade do Estado" - apenas um nome diferente para REBELDIA) têm produzido, há anos, uma enfática relativização do significado não só do amor, que foi um exemplo, mas de diversas palavras, de modo que as consequências para o Reino de Deus são visíveis. A palavra casamento foi relativizada. 


O significado de casamento pertence somente a Deus, pois Deus o instituiu e exerceu seu direito de defini-lo conforme a boa determinação de sua vontade (Ef 1.11). Mas no momento em que lançamos mão da Bíblia como fundamento epistemológico, passamos a definir casamento por nós mesmos. Então, o casamento não precisa mais ser casamento. Ele pode ser "união estável" ou qualquer outra besteira, sob qualquer formato e parâmetro que quisermos. 

Outras palavras foram também roubadas de seu fundamento eterno e mergulhadas no oceano ímpio do relativismo. "Família", "paraíso", "pecado", "homem", "mulher", "bom e mal", "certo e errado" foram igualmente estupradas. A agenda anticristã atualmente estabelecida é, indubitavelmente, um catalisador da relativização dos termos (e conceitos subjacentes) e da aproximação de um estado latente de não-conhecimento.

Entretanto, apesar do evidente cenário relativista em que vivemos, notamos também que o caos não é absoluto. Há ainda uma consciência geral, ainda que tímida e sufocada, acerca dos corretos significados das palavras, ou, mais precisamente, de uma direção que aponta para um sentido mais acurado delas. E isso, mesmo com a rejeição da Palavra de Deus. Tal ordem se deve ao fato de que Deus, em sua grande sabedoria, implantou no homem uma vívida intuição acerca de sua lei, bem como categorias de raciocínio lógico e proposições que as instrumentalizam. 


Destarte, ainda que o homem, em rebeldia contra seu criador, ouse cerrar os punhos e negar a Palavra de Deus como fundamento de todo o conhecimento, ele ainda PRECISA dos pressupostos bíblicos para viver. O homem natural consegue, por exemplo, concluir que dois mais dois somam quatro; ele só não é capaz de fornecer uma justificativa para este resultado, para a lógica. 

A não ser que o homem assuma a Bíblia como fundamento de todo o seu conhecimento, ele jamais encontrará justificativas últimas para a existência da lei moral, para a lógica e para a beleza. Mesmo assim, nós sabemos que se a experiência humana levar às últimas consequências sua rejeição da Escritura como único fundamento epistemológico possível, o resultado mais óbvio dessa rejeição será a completa relativização dos termos e, por fim, a imersão em um "limbo" epistemológico. Dirão os homens: "Não podemos conhecer nada; [porém] conhecemos que não podemos conhecer; e não sabemos explicar a razão desta flagrante incoerência! Nada tem sentido, nem mesmo o que eu estou dizendo agora".

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Fonte: Teologia Expressa

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