segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Agora depois do feminismo, as mulheres são mais felizes?


Por José António Saraiva

Lídia Jorge dizia há quinze dias, em entrevista ao SOL, que no tempo da sua infância “havia a ideia que a mulher tinha que ser como a galinha, útil em tudo”. E revelava que, ainda em criança, a mãe, a avó e a tia lhe pediam para ler alto romances portugueses, enquanto elas “ficavam a bordar, a costurar, a fazer cestos…”

Tenho muita estima por Lídia Jorge. Uma estima que herdei do meu pai, que me falava dela com muito entusiasmo depois de ler o seu livro O Cais das Merendas. O meu pai não era uma pessoa de elogio fácil, pelo que, quando se entusiasmava com alguma coisa em matéria literária, o elogio era para ser levado a sério. 

Ao longo dos anos, o meu pai foi-me falando de escritores e de livros que estava a ler ou que o tinham marcado. Além de Lídia Jorge, referia com frequência Agustina Bessa-Luís, por cuja escrita se apaixonou após ler A Sibila. De Nuno Bragança, ofereceu-me um dia A Noite e o Riso. Gostava pessoalmente de José Cardoso Pires, que chegou a ser visita de nossa casa, mas dizia que, depois O Hóspede de Job, passara a escrever sempre o mesmo livro. 

Nunca me falou de António Lobo Antunes e não gostava de José Saramago, cuja escrita considerava rude e com falta de elegância. Dos mais antigos, deu-me (num aniversário) a História de Portugal de Alexandre Herculano, encadernada. Venerava Oliveira Martins e o seu Portugal Contemporâneo. Deliciava-se com Eça de Queirós, tendo-me emprestado A Cidade e as Serras anotado a lápis. 

Não gostava muito de A Selva, de Ferreira de Castro, mas adorava A Lã e a Neve. Dos poetas, endeusava positivamente Fernando Pessoa e não poupava elogios a Herberto Hélder. 

Dos estrangeiros, falava recorrentemente de James Joyce e do seu Ulisses (no qual eu nunca consegui passar da página 30), e lembro-me de me ter oferecido, entre muitos outros, o Grande Sertão, Veredas, de João Guimarães Rosa, e o Cem Anos de Solidão, de García Márquez. Certo dia emprestou-me O Pacto, de James A. Michener, uma grandiosa epopeia da entrada dos boers na África do Sul.

Inversamente, detestava o neo-realismo, rejeitando com vigor a escrita como veículo de propaganda política. Desconsiderava, por exemplo, Soeiro Pereira Gomes e o seu celebrado Esteiros. A sua ruptura com o PCP, consumada em meados dos anos 60, reforçou esta aversão. O que o entusiasmava na literatura era a criatividade, a capacidade para reinventar a escrita, a invenção das palavras, a originalidade.

Mas tudo isto veio a propósito de uma frase de Lídia Jorge sobre as mulheres nos anos 50. 

Já escrevi várias vezes sobre o feminismo, que a meu ver seguiu um caminho errado. Em vez de falar na ‘igualdade de oportunidades’ para todos, homens ou mulheres, apostou numa ‘igualdade’ pura e dura, sem distinção de género – convocando as mulheres para queimarem os soutiens, cortarem o cabelo curto, vestirem-se à homem e usarem pasta à executivo. 

Este tipo de feminismo conduziu a um beco sem saída, porque as mulheres não queriam – com toda a razão – parecer-se com os homens. Queriam continuar a parecer mulheres, embora com direitos iguais. Acontece que esses direitos iguais, inquestionáveis, abanaram a sociedade de alto a baixo, revolvendo-lhe as entranhas. 

A entrada das mulheres no mercado de trabalho deu-lhes independência económica, permitindo-lhes libertarem-se das garras de maridos exploradores ou tirânicos, ou da ‘escravidão do lar’, como algumas lhe chamavam. Mas teve enormes consequências na estabilidade das famílias. Na sociedade matriarcal as mulheres eram o pilar da família: efectuavam os trabalhos domésticos, transmitiam segurança aos filhos através da presença em casa, garantiam o equilíbrio familiar.

Quando as mulheres começam a sair de casa para irem trabalhar, todo este equilíbrio naturalmente desaba. 

A casa fica vazia durante o dia inteiro e há tarefas que não se executam. As crianças não têm com quem ficar e vão para creches. As mulheres chegam a casa estafadas ao fim do dia de trabalho, não tendo paciência para os filhos nem para fazer nada. Muitos maridos protestam – e elas reclamam (justamente) com eles por não ajudarem. Só que os homens resistem, pois nunca viram os seus pais dividir as tarefas caseiras. O mal-estar no casal instala-se. Todos nós conhecemos situações destas.

A juntar a isto, o facto de as mulheres passarem mais tempo no trabalho do que em casa tem obviamente consequências. 

Passam a preocupar-se muitas vezes mais com as carreiras do que com a família, começam a ter filhos mais tarde e têm menos filhos. Os filhos beneficiam menos da presença das mães. As mulheres conversam mais tempo com alguns colegas do que com os maridos, criando relações de cumplicidade. A família relativiza-se, passa a segundo plano. Os adultérios, concretizados ou apenas idealizados, tornam-se mais frequentes.

Vendo o colapso de muitos casamentos, os jovens começam a hesitar em casar. As uniões tornam-se mais frágeis, mais efémeras, menos estáveis. Vive-se agora com uma pessoa e logo a seguir com outra. As mulheres têm hoje filhos de um companheiro e amanhã doutro – passando-se o mesmo com os homens. Os filhos sofrem com as separações dos pais, entram em instabilidade emocional – e daí ao consumo de drogas ou às tentativas de suicídio pode ir um pequeno passo. 

A crise da família traz às sociedades contemporâneas problemas infindáveis. Problemas que ninguém quer ver e de que ninguém quer falar porque não tem solução para eles. 

Sabe-se que a História não anda para trás, que a conquista de direitos por parte das mulheres é irreversível, que as fadas não regressarão ao lar. Mas ninguém sabe como resolver os problemas que o progresso levantou.

Entretanto, há uma pergunta fatal, embora muito politicamente incorrecta, que não pode deixar de ser feita: as mulheres são hoje mais felizes?

Mulheres que se levantam de madrugada para ir levar os filhos à escola, que vão a correr para o emprego, que vêm a correr do emprego para chegarem a horas de ir buscar os filhos, que vão a correr para casa para fazer o jantar (contando ou não com a ajuda dos maridos) terão uma vida melhor do que as que ficavam em casa a tratar dos filhos?

Mais independentes são, sem dúvida. Mas serão mais felizes?

Curiosamente, Lídia Jorge, que sempre lutou pelos direitos femininos, quando fala dos seus tempos de infância revela nostalgia e saudade por essa sociedade que já não existe. 

À pergunta “Em que sítio escreve?”, Lídia Jorge responde: “No Algarve, na casa da minha mãe. No sítio onde a minha avó amassava o pão”. É uma imagem caseira, de um tempo que passou. Mas é essa imagem que, ainda hoje, transmite segurança e paz à escritora. A avó a amassar o pão para a família.

O passado não volta. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Mas devemos ter consciência de que o progresso não traz só coisas boas e de que há sempre um preço a pagar. A escritora Maria Lamas, uma grande lutadora pelos direitos femininos, que também foi amiga do meu pai e esteve exilada em Paris ao mesmo tempo que ele, dizia que as mulheres tinham passado a ser “duplamente exploradas” – porque trabalhavam fora de casa e tinham de continuar a fazer em casa os mesmo trabalhos que faziam antes...


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Sem dúvida que esta é uma pergunta fundamental: as mulheres são mais felizes hoje? Ao se ler os comentários no site do Jornal Sol, e na página do Facebook, muito poucas mulheres responderam à pergunta de forma directa, preferindo dizer que "agora somos livres!", o que é falso.

Pode ser que as mulheres portuguesas sintam um misto de raiva e frustração por se aperceberem que foram enganadas com a canção da "liberdade", mas não queiram admitir isso sem perderem algo que elas valorizam. A raiva pode vir também do facto delas não saberem a quem acusar pela sua infelicidade. 

Ninguém sabe, mas uma coisa é certa: a resposta à pergunta do autor do texto condena (ou valida) toda a experiência social com o nome de "feminismo".

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