quinta-feira, 30 de julho de 2015

Arnaldo Jabor - Como amar a crise

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Não aguento mais a crise. A crise está enchendo o saco. Só se fala em crise. Quando a crise vai acabar?

Nunca? O Brasil é uma crise? Talvez, mas antes as crises eram analógicas, isoladas. Esta crise é épica, digital, a crise preenche as redes sociais – a crise é online. Que restará do Brasil quando acabar a crise? Apenas um grande vazio sem assunto? Que faremos sem ela? Talvez tristeza pura, porque a crise nos dava uma torta alegria de viver, um motivo para termos esperança. E se acabar também a esperança?


A crise é política, mas é também existencial. Estamos todos em crise.

A crise justifica tudo. Não tenho dinheiro por causa da crise, me separei por causa da crise, o Brasil perdeu de 7 a 1, por causa da crise. – “Meu bem, desculpe, não consigo. É a crise.”

A crise é uma novela de suspense: quem vai ser o corrupto de amanhã? Para os acusados políticos, a crise nunca existiu; eles sempre negaram tudo: nego, nego, não fiz, é invenção do Janot e do Sergio Moro. A crise para eles é apenas uma alucinação nossa. Quem melhor explica a crise são os motoristas de táxi; eles dizem: “a vaca vai pro brejo, sempre foi assim...” Discordo do doce chofer – nunca antes foi assim, e mais: a vaca já foi para o brejo. A partir do brejo, podemos sair da lama. Como vão prender tanta gente no final da crise? Esse é o perigo da crise: ser um rio sem foz, tão extensa e lenta que pode não dar conta de tantos processos. Com o passar do tempo, talvez digamos: “que crime esse cara cometeu mesmo?”

A crise também é uma ilusão para o governo. Não houve nada, tudo culpa da outra crise, a internacional. “Somos vítimas da crise de 2008 até agora.” Pela crise, conhecemos pessoas que estavam escondidas nos subterrâneos de Brasília. Ou nos esgotos. Surgiram carantonhas horrendas onde está estampada a caricatura da corrupção. 


Temos de tudo: máscaras, bonecos de engonço, mamulengos, temos um desfile de caras, de bocas, de mãos trêmulas, de risos e choros constrangidos, temos as vaidades na fogueira, os falsos clamores de honradez, os falsos testemunhos, vemos a lama debaixo das dignidades, vemos as sujeiras escorrendo sob as frestas da lei – um reality show sobre o Brasil. A crise mostra que há ladrões de dois tipos: o intensivo e o extensivo – os que roubam às vezes, pois a ocasião faz o ladrão, e os ladrões extensivos, que roubaram e roubarão sempre não por necessidade, mas por tesão.

Não se emendam depois de 20 anos: começam com Fiat Elba e terminam com Lamborguines de R$ 5 milhões. A crise mostra que a cumbuca é sem fundo. A corrupção excita muito – quando se abrem as malas de dólares, os bordéis se enchem. Há pouco, soubemos que foram gastos mais de US$ 150 mil nos prostíbulos de Brasília. A crise só foi boa para as prostitutas.

A crise limpa muita gente; ser contra a corrupção, por exemplo, nos faz mais puros, mas honestos, mesmo que tenhamos pegado um troco aqui e ali, que ninguém viu. A crise nos lava mais branco. A crise testa nossa honestidade – será que eu aceitaria uma gorjeta de US$ 10 milhões? A crise mostra que consciência social no Brasil é medo da polícia. A crise estremece o Congresso; a arrogância deu lugar ao tremor. A crise é democrática – atinge todo mundo, até os presidentes do Congresso. 


Você vê a crise no medo dos ricos, no rosto dos tristes viajantes de ônibus, a crise enfeia as pessoas, a crise engorda, emagrece, mata. A crise contamina e estimula a criminalidade, pois, se todos roubam, por que não podemos nós? A crise cria balas perdidas e assassinatos a faca. A crise acabou com a Petrobras, porque, como cantávamos antigamente: o petróleo é nosso – eles se gabam.

Por isso, por essa pletora de horrores, temos de encontrar algum lado bom da crise.

A crise é boa para nos dar a sensação de que a vida muda, que a história anda. A crise nos tira o sono e nos faz alertas.

A crise nos inclui na vida política; vivíamos sonolentos e na sombra, e agora saímos nas ruas a bater panelas.

A crise é uma aula – quase um videogame. A crise é um thriller em nossas vidas. A crise nos permite ver a verdade de cabeça para baixo. Ensina que a verdade é o contrário de tudo que alegam os depoentes. A verdade é tudo que os políticos negam.

A crise também é cultura. A crise é Brecht, Shakespeare, Nelson Rodrigues.

A crise nos ensinou que os “revolucionários” no poder são tão escrotos quanto os “reacionários”. Qual a diferença entre Sarney e Vaccari? A crise nos mostra que um ex-proletário metido a guia do povo pode virar um deslumbrado com jatinhos e uísque 30 anos e que sabe e sabia de tudo. 


Ele criou a crise pela ignorância e pelo narcisismo. A crise nos ensina que presidentes têm de estudar e ter competência. A crise é boa porque acaba com a mistificação do PT, que era o partido dos “puros”. A crise acaba com os fins justificando os meios, ou seja, como pensavam e pensam: podemos ferrar a Petrobras em nome de uma “revolução”.

A crise mostra que o Brasil progride enquanto dorme. A crise nos ensina que a miséria nasce nos intestinos das classes altas. A crise prova que as pessoas não são “cumpanheiros” ou militantes, mas seres narcisistas, compulsivos, agressivos, invejosos, fracassados e com problemas sexuais. A crise é mais Freud do que Marx.

A crise mostra que a esquerda velha não tem projeto, mas um sonho que virou pesadelo. A crise nos diploma como cientistas políticos. A crise não é uma crise, mas uma “mutação” histórica. Nunca mais seremos os mesmos. A crise acaba com o angustiante futuro e nos devolve o doce presente. A crise também foi boa para nos dar uma porrada na cara, para deixarmos de ser bestas.


Fonte: O Tempo

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