sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Compreendendo a morte e a vida


Texto base: Eclesiastes 9.1-18

Introdução

No final do capítulo anterior (8.9-15), Salomão esmera-se em conhecer a obra de Deus neste mundo. Nessa busca, ele sofreu bastante. O maior obstáculo com que Salomão se deparou ao meditar na providência divina foi a separação que é delineada entre os bons e os maus, no que tange o decreto das bênçãos, adversidades e a disposição desses acontecimentos no mundo.

Este modo soberano de Deus agir gerou indagação em muitos homens sábios. Portanto, Salomão discorre acerca da inescrutável providência divina. Sabendo que homem algum pode descobrir os pormenores da obra de Deus, o pregador salienta aquilo que pode evitar a nossa “queda” emocional e espiritual, ou seja, a perda do sentido de viver.

Nesta perícope, Salomão aborda dois temas – “a sabedoria humana em contraste com os desígnios de Deus”. Este terceiro ciclo que antecede a conclusão do livro de Eclesiastes (6.8–12.7) recomenda-nos a usufruir com diligência dos prazeres que a vida e o trabalho proporcionam, tendo em vista a possibilidade de não sermos recompensados apropriadamente nesta vida pelo esforço e a integridade de caráter que demonstramos.

O esboço analítico deste trecho pode ser dividido em três partes. Na primeira parte, Salomão reflete sobre a infalibilidade da morte (9.1-6). Na segunda parte, ele recomenda que desfrutemos integramente dos prazeres da vida (9.7-10). E, na terceira parte, Salomão fala sobre como a vida é imprevisível (9.11-18).

Explanação


1. A infalibilidade da morte (9.1-6)

Nos versículos 1-3, Salomão observa que, no tocante as coisas externas, as boas e as más pessoas são praticamente similares. Nos versículos 4-6, por sua vez, o pregador descreve que os prazeres e o trabalho findam-se com a morte. Por conseguinte, cinco observações são destacadas.

a) Deus governa a vida de todas as pessoas (vs.1)

Após refletir de coração sobre as “desigualdades na vida” (8.9-15) e “a obra de Deus nesse mundo”, Salomão ressalta que chegou à conclusão de que os justos e os sábios, e tudo o que fazem é governado pela vontade soberana de Deus. A vida de todas as pessoas está nas mãos de Deus. Assim, não é possível saber se mais coisas boas ou se mais coisas ruins estão decretadas para a nossa vida.

“O futuro do ser humano é desconhecido e incompreensível; tudo pode acontecer”.[1] Somente Deus conhece o nosso futuro, o qual Ele mesmo estabeleceu (veja alguns exemplos em Jó 23.13-14; Pv 19.21; 42.2; Is 14.24,27; 43.13; 46.8-11; Lc 24.44-47; Hb 6.17; Jo 21.18-19).

Heber Carlos de Campos salienta que os decretos de Deus são as resoluções que o Senhor Deus toma (na eternidade) a fim de que sejam cumpridas ou realizadas na história do mundo. Ele decreta todos os acontecimentos, grandes ou pequenos, sejam diretamente relacionados com a história da redenção ou não. Tudo o que acontece em nosso mundo e em nossa vida pessoal é produto da vontade decretiva de Deus.[2] Certamente, até o retorno glorioso de Cristo para a consumação de todas as coisas, tanto os bons como os maus irão experimentar “momentos de felicidade e momentos de adversidade” na vida (vs.2-3a).

b) A uniformidade da vida (vs.2-3a)

A vida é igual para todos. As mesmas coisas que sucedem ao justo sucedem ao perverso, afirma Salomão. A expressão tudo sucede igualmente a todos não é aplicada somente à morte, apesar de a passagem seguir nesse sentido. O foco do pregador é demonstrar através de uma série de contrastes que “o justo não é favorecido de modo visível pela providência, nem o injusto admoestado de modo visível pela providência. 

A própria morte chega, sem discriminação, a todos”.[3] É bem provável que a expressão ao que jura refira-se ao juramento pelo nome do Senhor (Dt 6.13; 10.20), que era parte da fidelidade à aliança de Deus. A expressão ao que teme o juramento é mais bem traduzida por aquele que evita o juramento; refere-se aquele que evita ser fiel à aliança de Deus.

Matthew Henry sintetiza o contraste descrito por Salomão:

Os justos são puros, possuem mãos puras e corações puros; os ímpios são impuros, estão sob o domínio da cobiça impura, puros talvez em seus próprios olhos, mas não purificados de sua indecência. [...] 

Os justos sacrificam, isto é, eles têm consciência da adoração a Deus segundo a sua vontade, tanto na adoração mais íntima quanto na pública; os ímpios não sacrificam, ou seja, eles vivem negligenciando a adoração a Deus e têm raiva de participar de qualquer coisa para a honra dele. 

Quem é o Todo-Poderoso, para que eles o sirvam? Os justos são bons, bons aos olhos de Deus, eles fazem o bem no mundo; os ímpios são pecadores, violando as leis de Deus e do homem, e provocando a ambos. 

O homem ímpio jura, não tem veneração alguma pelo nome de Deus, mas o profana ao jurar de forma precipitada e falsa; porém o homem justo teme o juramento, não jura, mas é ajuramentado, e isso com grande reverência; ele teme fazer um juramento, porque este é um apelo solene a Deus como testemunha e juiz; quando faz um juramento, ele teme quebrá-lo, porque Deus é justo para tomar vingança. 

Existe uma grande diferença entre a origem, o desígnio e a natureza do mesmo acontecimento para um e para o outro; os seus efeitos e questões são igualmente muito diferentes; a mesma providência para um é cheiro de vida para vida, e para o outro, de morte para morte, ainda que, aparentemente, seja a mesma coisa.[4]

O fato de todas as coisas terminarem da mesma forma para os bons e os maus é denominado por Salomão de mal. Ele estava consternado por não ter nenhuma mensagem de consolo para ser transmitida. O pregador apenas classificou os eventos da vida como “o mal que acontece neste mundo” (vs.3a).

c) A corrupção universal (vs.3b)

Salomão alude que o coração dos homens está repleto de perversidade e loucura até a morte chegar. Steven Lawson diz que o pregador se refere ao pecado como loucura. A rebelião contra Deus é insanidade espiritual.[5] 

O pregador não considera a morte um “fenômeno natural”, mas um mal invencível e inevitável da perspectiva humana, pelo menos enquanto aguardamos o estabelecimento do reino de Deus nesta terra, que se dará por ocasião da segunda vinda de Cristo, onde a morte não mais existirá.

A palavra maldade está conectada à palavra desvarios, que enfatiza a corrupção radical do homem. Após a queda, todas as faculdades do homem [pensamento, sentimento e vontade] foram corrompidas pelo pecado. No entanto, é importante ressaltar que a “depravação total” não significa que o homem é completamente corrupto pelo pecado, ao ponto de não poder manifestar nenhum ato de bondade. Não! Antes, a “depravação total” mostra que o homem é extensivamente, e não totalmente corrupto.

Duane Edward Spencer elucida:

Depravação Total, portanto, não significa que o homem seja incapaz de realizar algum bem humano. Todos nós sabemos que o mais perverso dos homens é capaz de algum bem humano. A doutrina reformada da "Depravação Total" não afirma que, no homem, não há bem algum. Quando o homem se mede pelo homem, ele é sempre capaz de encontrar algum bem em si mesmo ou nos outros (Ef 2.2-3).

A Depravação Total significa que o homem, em seu estado natural, é incapaz de fazer qualquer coisa ou desejar qualquer coisa que agrade a Deus. Enquanto ele não nascer de novo, por obra do Espírito Santo, e enquanto o seu espírito não for vivificado pela graça de Deus, o homem é escravo de Satanás ("O príncipe do poder do ar"), que o leva a satisfazer todos os desejos da carne, que são inimizades contra Deus. 

Aos olhos de Deus, o "melhor dos homens" só alimenta pensamentos maus, porque os homens são orientados a fazer apenas o bem humano, para a glória de si mesmos ou para a glória de Satanás, mas nunca para a glória do Criador (Gn 6.5; Jr 17.9).[6]

Salomão confere a maldade ao coração de todos os homens. O coração é a natureza interior do homem. Logo, os homens são alienados de Deus por toda a vida (7.29). Após a morte, eles são conduzidos ao estado intermediário, onde aguardam o “acerto de contas” com Deus, que acontecerá no julgamento final, com o retorno de Cristo (11.9; 12.7).

Warren Wiersbe escreve:

“O coração dos homens está cheio de maldade” e, mais cedo ou mais tarde, essa maldade vem à tona. As pessoas fazem quase qualquer coisa, exceto se arrepender, a fim de escapar da realidade da morte. Embebedam-se, brigam com os parentes, dirigem sem qualquer cuidado, esbanjam seu dinheiro com coisas inúteis e mergulham de cabeça numa sucessão de prazeres sem sentido, tudo para manter afastada a realidade da morte. Porém, suas tentativas tão custosas não encerram a guerra, mas apenas as distraem da batalha, pois o "último inimigo" [a morte] continua presente.[7]


d) Um adágio oportuno (vs.4)


Tendo em vista que a realidade da morte atinge a todos, e que coisas boas e más acontecem com todos (vs.2-3), Salomão afirma que há esperança para os que vivem, isto é, existem fatos para acontecer em nossas vidas que aguardamos com expectativa. Para completar o seu argumento, o pregador enseja um provérbio geral: porque mais vale um cão vivo do que um leão morto. 

Salomão está dizendo que, a despeito da realidade da morte e da imparcialidade da vida, os homens apegam-se à esperança como a última coisa que morrerá, e presumem que é melhor um cachorro vivo do que um leão morto. O leão, o animal mais forte, era muito admirado no mundo antigo (Pv 30.30). O cachorro, por outro lado, era um animal desprezado por seu desasseio (Pv 26.11) e por se alimentar de carniça (Êx 22.31; 1Rs 14.11).

Champlin realça:

O pregador nada acrescenta a essa declaração, como se, realmente, nela houvesse alguma esperança. Ele estava apenas observando quão tolamente os homens continuam esperando, a despeito das infelizes evidências contrárias. O leão era o rei dos animais, temido e honrado pelos homens e pelos animais irracionais. 

O cão selvagem do Oriente (lá não se criavam cães como animais domésticos) era um predador imundo e desprezado. Mas um cão daquela natureza desprezível se estivesse vivo, seria melhor que um nobre leão em adiantado estado de putrefação.[8]

A esperança dos homens sem Deus é uma esperança limitada, pois se baseia nos prazeres efêmeros da vida terrena, como o prazer na comida, nos momentos de interação, no casamento e no trabalho (vs.7-10). “A esperança alicerçada em fatores humanos e terrenos é tragicamente mal orientada”.[9]

Todavia, o relato de Salomão nos leva a refletir sobre uma “esperança equilibrada”. Em primeiro lugar, nossa esperança deve ser em Deus. Em segundo lugar, nos prazeres que Ele nos conferiu para desfrutarmos nessa vida (vs.7-10). Os prazeres foram dados para que nos alegremos neles visando o Deus que os proporcionou. Experimentamos a verdadeira felicidade quando glorificamos a Deus através dos prazeres da vida (1Co 10.31).

e) Uma reflexão sobre a morte (vs.5-6)


O pregador relata que a morte alcançará a todos, e declara também a inatividade dos que já morreram. Num momento de inquietude, Salomão ufanou os que já haviam morrido mais dos que ainda vivem (4.2). Porém, tendo em vista os benefícios da vida na preparação para a morte, e a garantia de uma vida deveras melhor, o pregador esboça outra opinião.

A esperança no versículo 4 se explica pela oportunidade que esta vida atual nos apresenta, a fim de considerarmos a morte como fato inevitável, como Salomão tem insistido tanto, e a fim de avaliarmos a vida corretamente. Não se dá qualquer descrição de uma vida além do túmulo; apenas uma advertência de que haverá um julgamento e a lembrança negativa de que cessam todas as experiências terrenas.[10]

Matthew Henry acentua:

Enquanto há vida, há uma oportunidade de preparação para a morte: Os vivos sabem aquilo de que os mortos não têm conhecimento algum, particularmente eles sabem que hão de morrer, e são, ou podem ser, por meio disso, influenciados para se prepararem para a grande mudança que certamente virá, e pode vir repentinamente. [...] 

Os mortos não sabem coisa nenhuma sobre aqueles com quem eles, enquanto viveram, estavam intimamente familiarizados. Não parece que eles sabem qualquer coisa acerca do que é feito por aqueles que eles deixam para trás. [...] 

Há um fim para os seus nomes. São poucos aqueles cujos nomes sobrevivem por muito tempo; o túmulo é uma terra de esquecimento, pois a memória daqueles que estão ali é logo entregue ao esquecimento; sua terra não os conhece mais, nem as terras às quais eles deram seus próprios nomes.[11]

Em seguida, o pregador salienta que os mortos são incapazes de relacionar-se com os vivos. Os mortos estão impossibilitados de expressar amor, ódio e inveja pelos que ainda se encontram na terra (vs.6). A morte cessa a participação que as pessoas tinham em desfrutar dos relacionamentos interpessoais e dos sentimentos que eles produzem [amor, ódio e inveja]. 

A expressão para sempre não têm eles parte em coisa alguma do que se faz debaixo do sol enfatiza a perda da vida neste mundo.

Matthew Henry completa:

Há um fim para as suas afeições, suas amizades e inimigos: O seu amor, o seu ódio e a sua inveja já pereceram; as coisas boas que eles amaram, as coisas ruins que eles odiaram, a prosperidade dos outros que eles invejaram, têm um fim com eles. A morte separa aqueles que amam um ao outro, e põe um fim na amizade deles, e aqueles que odeiam um ao outro também, e põe um fim nas brigas deles. [...] Aquelas coisas que agora nos afetam, nos satisfazem, nos causam tanta preocupação e provocam tanto ciúme, terão um fim.[12]

2. Desfrutando integramente dos prazeres da vida (9.7-10)


Na perícope anterior (vs.1-6), Salomão descreveu uma melancólica reflexão sobre a inevitabilidade da morte; agora, ele articula cinco imperativos que devem ser observados. O pregador admoesta a usufruirmos de forma honrosa dos “prazeres do mundo” enquanto tivermos vida, os quais foram proporcionados por Deus para a nossa felicidade (2.24-26; 3.12-13,22; 5.18-20).

Salomão pecou abusando dos “prazeres do mundo”; mesmo assim, ele não os proíbe, mas orienta-nos a fazer uso deles de forma equilibrada para que Deus seja glorificado. Podemos e devemos lograr dos prazeres, mas não pecar, abusando deles. 
O pregador exibe um catálogo de quatro experiências comuns da vida familiar. 
Primeiro, as refeições (vs.7); 
segundo, as comemorações (vs.8); 
terceiro, um casamento fiel e amoroso (vs.9); 
quarto, o trabalho árduo (vs.10). 

Vejamos, pois, os ditames que o pregador elenca para nós:

a) Desfrute de sua alimentação (vs.7)

As famílias israelitas começavam o dia com um lanche pela manhã e uma refeição leve entre dez horas e meio-dia (um "brunch"), e só voltavam a se reunir para comer depois do pôr-do-sol. Quando terminavam o trabalho, reuniam-se para a refeição mais importante do dia, composta principalmente de pão e vinho, com alguns legumes e frutas da estação e, às vezes, peixe. 

A carne era cara, e era costume servi-la apenas em ocasiões especiais. O jantar era uma refeição simples, feita para alimentar o corpo e também o espírito, pois "repartir o pão" era um ato comunitário de amizade e de compromisso.

A coisa mais importante do cardápio é o amor da família, pois o amor transforma uma refeição comum num banquete. Quando as crianças preferem comer na casa dos amigos a trazer os amigos para sua casa para experimentar a comida de sua mãe, é hora de fazer uma reavaliação daquilo que acontece ao redor da mesa.13

b) Desfrute de cada momento (vs.8)

Nos lares, de um modo geral, a vida era difícil, mas toda família sabia desfrutar as ocasiões especiais, como casamentos e encontros. Era nesses dias que usavam roupas brancas e se ungiam com perfumes caros, em vez do costumeiro azeite de oliva. Essas ocasiões eram raras, de modo que todos as aproveitavam ao máximo.

Porém, Salomão aconselha o povo a sempre vestir roupas brancas e a sempre se ungir com perfumes especiais. É evidente que seus ouvintes não interpretaram essas palavras ao pé da letra, pois sabiam o que ele estava dizendo: façam de toda ocasião uma ocasião especial, mesmo que seja algo rotineiro. Não devemos expressar nossa gratidão e alegria apenas quando estamos comemorando acontecimentos especiais. Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos (Fp 4.4).[14]

c) Desfrute do seu casamento (vs.9)

Salomão não tinha conhecimento algum dos conceitos de "viver junto" e de "casamento experimental". Para ele, a esposa era uma dadiva de Deus (Pv 18.22; 19.14), e o casamento era um compromisso amoroso para toda a vida. Por mais difícil que seja a vida, há sempre alegria no lar do homem e da mulher que se amam e que são fieis a seus votos matrimoniais.

O pregador não viveu de acordo com os próprios ideais. Deixou de lado os padrões de Deus para o casamento e permitiu que suas muitas esposas o seduzissem para longe do Senhor (1Rs 11.1 -8). Se o rei escreveu Eclesiastes mais perto do fim de sua vida, como acredito ser o caso, então o versículo 9 é a sua confissão: "Agora entendo!"[15]

O casamento é uma instituição de divina, sendo algo bom e recomendável (Gn 2.18, 24). Aqui, Salomão enumera três requisitos indispensáveis para o casamento bem sucedido. Portanto, deve haver no casamento:

i. Alegria (vs.9a)

ii. Demonstração de amor (vs.9b; Ef 5.25)

iii. Perseverança na alegria e no amor (vs.9c)

iii. Responsabilidade para com os deveres do lar (vs.9d)

Devemos usufruir do matrimônio baseados no padrão estabelecido pelas Escrituras (1Co 7.1-16; Ef 5.22-31), sabendo que a vida é demasiadamente insegura e transitória, e que o casamento é uma “parte” dos prazeres terrenos que Deus se agradou em nos proporcionar, a fim de o glorificarmos.

d) Desfrute do seu trabalho (vs.10)


Salomão faz um convite para o trabalho ativo enquanto estamos vivos, pois, na morte, não há atividade alguma. O pregador admoesta a nos entregarmos ao prazer que o trabalho proporciona nesta vida. Adiante, vemos que Salomão pinta um quadro negativo do além, que é o “lugar dos mortos”. Ele afirma que nesse lugar não há oportunidades para a vida terrena. 

O povo de Israel não considerava o trabalho uma espécie de maldição, mas uma incumbência recebida de Deus. Até mesmo os rabinos aprendiam um ofício (Paulo fazia tendas) e lembravam: "Aquele que não ensina o filho a trabalhar, o ensina a roubar". Nas palavras de Paulo, se alguém não quer trabalhar, também não coma (2Ts 3.10).[16]

Se pautarmos nossa vida na Palavra de Deus, não iremos fugir da vida ou, então, “suportá-la”, vivendo entenebrecidos. Pelo contrário, desfrutaremos de todos os prazeres que Deus nos concedeu para vivermos felizes. Tais prazeres são uma dádiva do Senhor, que deve ser glorificado em cada um deles.

3. A imprevisibilidade da vida (9.11-18)


Tendo discorrido sobre a realidade inevitável da morte, Salomão nos encorajou a usufruirmos de maneira íntegra dos prazeres que Deus nos proporcionou, pois esta vida é passageira (vs.7-10). Dessa vez, o pregador deixa de falar da morte para falar da incerteza da vida. Salomão expressa a contingência dos acontecimentos futuros e como eles contrariam nossas expectativas. 

O pregador nos ensina através de três ilustrações que não devemos ficar confiantes do sucesso, porquanto a vida é imprevisível. Salomão ainda mostra a importância de termos sabedoria para lidarmos nas diversas esferas da vida, as quais são suscetíveis às adversidades. Desse modo, Salomão enfatiza cinco atividades que não garantem o sucesso:

1. O corredor pode perder uma maratona (vs.11)

2. A potência militar não garante a vitória na batalha (vs.11)

3. De igual modo, a sabedoria não garante o sucesso e o reconhecimento (vs.13-16)

4. A sabedoria associada à pobreza é geralmente desprezada (vs.15-16)

5. A justiça e o reconhecimento não são garantidos nesta vida (vs.13-16)

a) Nossas habilidades nem sempre garantem o sucesso (vs.11)


Salomão ensina que o homem sábio não deve empolgar-se demasiadamente com os prazeres a ponto de esquecer-se de outra realidade indubitável: “as frustrações”, as quais assomam repentinamente em nossas vidas. Através de uma ilustração, o pregador descreve a inconstância de uma vida bem sucedida. Em outras palavras, “nem sempre as coisas serão do jeito que esperamos”.

Apesar de ser verdade que, de um modo geral, os corredores mais rápidos vencem as corridas, os soldados mais fortes vencem as batalhas e os trabalhadores mais competentes conseguem os melhores empregos, também é verdade que essas mesmas pessoas talentosas podem sofrer grandes fracassos por conta de fatores fora de seu controle. As pessoas bem-sucedidas sabem como aproveitar ao máximo o tempo e o modo (8.5), mas somente o Senhor tem o controle do tempo e do acaso.[16]

A palavra acaso refere-se ao surgimento de um fato inesperado que não pode ser previsto, mas que foi planejado e executado por Deus através da sua providência neste mundo. Mesmo que o acaso ocorra fortuitamente, ele é real e frustra os planos dos homens outrora estabelecidos. O acaso não escapa do controle de Deus, pois faz parte dos seus decretos soberanos; e somente o que foi decretado irá acontecer. Não obstante, por meio dessas metáforas, três aplicações práticas são destacadas:

i. Por mais capacitados que sejamos, nem sempre estaremos em primeiro lugar nas corridas da vida (vs.11a)

ii. Por mais capacitados que sejamos, nem sempre venceremos as batalhas da vida (vs.11b)

iii. Por mais capacitados que sejamos, nem sempre seremos prósperos nesta vida (vs.11c)

b) A tribulação desponta inesperadamente na vida das pessoas (vs.12)


O pregador acentua, por meio de outra ilustração, que as calamidades surgem repentinamente em nossa vida e malogram [estragam] nossos planos. Salomão “focaliza o fluxo de acontecimentos como trabalhando contra os objetivos e esperanças do homem”.[17] Quando menos esperam, os peixes são pegos numa rede e as aves são presas na armadilha. Assim também os homens são enredados no tempo da calamidade por acontecimentos inesperados fora de seu controle.[18] Os acontecimentos da vida retratam como realmente ela é – a saber – “imprevisível, inescapável e repentina”.

Matthew Henry salienta:

O tempo e a sorte pertencem a todos. Uma Providência soberana rompe com as medidas dos homens, e destrói suas esperanças, e os ensina que o caminho do homem não está nele mesmo, mas sujeito a vontade divina. Nós devemos usar os meios, mas não confiar neles; se nós tivermos êxito, devemos louvar a Deus (Sl 44.3); se nós ficarmos “irritados”, devemos concordar com a vontade dele e tomar a nossa parte.[19]

c) As oportunidades que temos na vida nem sempre garantem o nosso sucesso (vs.13-18)

Mais uma vez, Salomão relata uma observação. Adiante, baseado nessa observação, o pregador erige seus comentários. O termo usual vi, que aparece diversas vezes em Eclesiastes (veja 2.13,24; 3.16; 4.1,4,7,15; 5.13,18; 6.1; 7.15; 8.9-10,17; 9.11,13; 10.5,7), enfatiza acontecimentos reais que estimularam as reflexões de Salomão. Assim sendo, é bem provável que a terceira ilustração [uma parábola] que o pregador descreve não seja fictícia, mas uma experiência real. O tema deste trecho poderia ser resumido pela seguinte frase: “A sabedoria é poderosa, mas, por muitas vezes, é negligenciada e não recompensada”.

Salomão retrata a história de uma pequena cidade que fora sitiada pelo poderoso exército de um rei. Essa cidade era fraca, por ter poucos habitantes, e insignificante, quando comparada ao prestígio do rei e a força de seu exército. Não fica claro se o pobre homem sábio, que foi esquecido pelas pessoas, livrou ou não a cidade.

Pessoalmente, acredito que a segunda hipótese é a mais provável; o pobre homem sábio foi esquecido, quando poderia ter salvado a cidade (vs.16-18). Embora as versões ARA, ARC, NVI e Almeida Século 21 deixem a impressão de que o sábio tenha livrado a cidade [... que a livrou pela sua sabedoria], a segunda interpretação se harmoniza melhor com o contexto imediato, que, por sinal, ratifica o entendimento de que o pobre homem sábio “poderia ter livrado a cidade” (GNB, NEB e NASV). Logo, essa parábola fornece duas aplicações práticas.

i. Por mais grandiosas que sejam nossas intenções, nem sempre teremos a oportunidade de executá-las (vs.15a)

Michael A. Eaton ressalta que a sabedoria nem sempre é prestigiada. Embora ela possa livrar alguém das situações mais adversas, as circunstâncias pobres dos menos privilegiados depõem contra esses, e desprezam a sabedoria.[20]

ii. Por mais sábios que sejamos, nem sempre seremos lembrados (vs.15b-16)

Ainda que a sabedoria sobrepuje a força, geralmente ela é desprezada! No mundo pós-moderno, onde a mediocridade intelectual e a deformação da arte imperam, a tolice predomina sobre a sabedoria. Mesmo que a sabedoria seja importante, não devemos fixar nossa esperança na sabedoria que temos, pois ela fenece com a morte (2.15-16).

d) A excelência da sabedoria (vs.17-18)

A cidadezinha havia sido sitiada e o sábio poderia tê-la livrado, mas ninguém prestou atenção a esse homem. O versículo 17 indica que um governante alardeador recebeu toda a atenção e conduziu o povo à derrota. O sábio falou calmamente e foi ignorado. Teve a oportunidade de chegar à grandeza, mas foi frustrado por um fanfarrão ignorante.[21] 

O pecado de Acã fomentou a derrota do exército de Israel na batalha (Js 7); o pecado de Davi gerou uma série de consequências para Israel (2Sm 24); e a revolta de Absalão provocou uma guerra civil (2Sm 15). É comum vermos um bom projeto que ocasionaria bem-estar público ser frustrado por um adversário sútil.

Matthew Henry expande:

Uma mente prudente, que é a honra de um homem, é preferível a um corpo robusto, em que muitas das criaturas brutas excedem os homens. Pela sua sabedoria, um homem pode promover aquilo que ele jamais poderia encontrar pela sua força, e pode superar aqueles que, pela trapaça, são capazes de dominá-lo. [...] 

A sabedoria ou a religião e a piedade (pois, aqui, o homem sábio é colocado em oposição a um pecador), é melhor do que todas as dotações e equipamentos militares, pois ela fará com que Deus se empenhe por nós, e então estaremos seguros contra os maiores riscos e seremos bem sucedidos nos maiores empreendimentos. 

Disso, ele observa a força de comando e o poder da sabedoria, ainda que trabalhe sobre desvantagens externas. [...] Daquilo que ele observou do grande bem que um homem sábio e virtuoso pode fazer, ele deduz o grande dano que um ímpio pode causar, e que ele pode ser o obstáculo para muitas coisas boas: Um só pecador destrói muitas coisas boas.[22]

Nossa sociedade honra a riqueza, a atratividade e o sucesso acima da sabedoria. Mesmo sendo um bem maior do que o poder, a sabedoria é muitas vezes negligenciada, sobretudo a dos pobres. Com essa parábola, podemos apreciar a sabedoria, não importa de que classe venha a pessoa que a manifeste.[23]

Conclusão


Warren Wiersbe acentua:

Uma vez que a morte é inevitável e a vida é imprevisível, o único rumo que podemos seguir com segurança é nos entregarmos inteiramente nas mãos de Deus e andar pela fé, de acordo com sua Palavra. Não vivemos de explicações, mas de promessas. Não dependemos da sorte, mas da obra providencial de nosso Pai amoroso ao confiar em suas promessas e obedecer à sua vontade.[24] ________
NOTAS:
1. William McDonald. Comentário do Antigo Testamento, pág 611.
2. Heber Carlos de Campos. O Ser de Deus e seus atributos, pág.190.
3. Michael A. Eaton. Eclesiastes, introdução e comentário, pág 132-133.
4. Matthew Henry. Comentário Bíblico do Antigo Testamento. Jó a Cantares, pág 938.
5. Duane Edward Spencer. TULIP, os Cinco Pontos do Calvinismo, pág 28-29.
6. Steven Lawson. Fundamentos da graça. Longa linha de vultos piedosos, pág 227.
7. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo do Antigo Testamento. Volume 3 – Poéticos, pág 497.
8. Champlin. O Antigo Testamento Interpretado. Volume 4, pág 2731.
9. Bíblia de Estudo Genebra. Notas de Rodapé, pág 863.
10. Michael A. Eaton. Eclesiastes, introdução e comentário, pág 134.
11. Matthew Henry. Comentário Bíblico do Antigo Testamento. Jó a Cantares, pág 939.
12. Ibid.
13. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo do Antigo Testamento. Volume 3 – Poéticos, pág 498.
14. Ibid, pág 498-499.
15. Ibid, pág 499.
16. Ibid.
17. Michael A. Eaton. Eclesiastes, introdução e comentário, pág 138.
18. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo do Antigo Testamento. Volume 3 – Poéticos, pág 500.
19. Matthew Henry. Comentário Bíblico do Antigo Testamento. Jó a Cantares, pág 941.
20. Michael A. Eaton. Eclesiastes, introdução e comentário, pág 139.
21. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo do Antigo Testamento. Volume 3 – Poéticos, pág 500.
22. Matthew Henry. Comentário Bíblico do Antigo Testamento. Jó a Cantares, pág 942-943.
23. Bíblia de Estudo Aplicação pessoal. Notas de Rodapé, pág 884.
24. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo do Antigo Testamento. Volume 3 – Poéticos, pág 500.

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Autor: Leonardo Dâmaso
Fonte: Bereianos

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