quarta-feira, 15 de junho de 2016

'Paraíso socialista': De que adianta “direitos garantidos” na lei se o Estado não tem dinheiro para cumpri-los?

Hospital em Barcelona, Venezuela. Foto de Meridith Kohut, The New York Times

Por Pedro Burgos

Está na Constituição:


“A saúde é um direito social fundamental, obrigação do Estado, que o garante como o direito à vida. O estado promoverá o desenvolvimento de políticas orientadas a elevar a qualidade de vida, o bem-estar coletivo e o acesso a todos os serviços. Todas as pessoas têm direito à proteção da saúde. (…)

Para garantir o direito à saúde, o estado criará e gerenciará um sistema público nacional de saúde (…) regido pelos princípios de gratuidade, universalidade e integralidade. (…) O financiamento do sistema público nacional de saúde é obrigação do Estado.


Falo da Constituição venezuelana, artigos 83–85, no caso. Pela letra da lei, os venezuelanos têm, talvez, até mais direitos que os brasileiros. Mas, na prática, médicos denunciam um “holocausto na saúde”. Ano passado, 44% das salas de cirurgia estavam inoperantes, e 94% dos laboratórios não tinham os materiais necessários para fazer exames. 

De 2012 pra cá, a mortalidade entre recém-nascidos aumentou 30 vezes! “Parece que estamos no século 19”, disse um cirurgião do hospital Universidade dos Andes, Christian Pino, em uma triste reportagem do New York Times.

Hospital em Barcelona, Venezuela. Foto de Meridith Kohut, The New York Times Hospital em Barcelona, Venezuela. Foto de Meridith Kohut, The New York Times
O Brasil não é “a Venezuela que Chávez sonhou”, como disse Lula fazendo campanha para Maduro. Porém, a realidade sofrida dos nossos vizinhos deveria lembrar-nos de algo óbvio: quanto menos dinheiro o Estado tem para garantir o bem-estar da população, menos vale o que a Constituição diz.

Nos últimos meses, seguindo a cartilha regina-duártica, ouvimos dos apoiadores do governo Dilma que ser a favor do impeachment seria favorecer o corte de direitos e conquistas recentes dos trabalhadores. A narrativa de que um governo Temer (ou, antes, Marina e Aécio) significaria “menos direitos” continuou forte na primeira semana do interino. Leonardo Sakamoto resumiu o argumento desse pessoal, dizendo que “O governo Temer escolhe o inimigo: os direitos adquiridos pelos mais pobres.” Escreveu:

“Se um governo diz que não consegue cumprir os direitos básicos previstos pela Constituição Federal, por que não pede para sair ao invés de piorar o que já está ruim? Que tal convocar novas eleições e deixar o povo escolher se quer realmente abrir mão de seus “direitos adquiridos‘’ em nome de uma visão questionável de “progresso”?”

O argumento de Sakamoto representa um problema comum no Brasil quando se discutem políticas públicas: o de achar que “direitos” e situação econômica de um país por algum motivo andam separados, como se leis tivessem poderes mágicos. Por essa visão, constrói-se a narrativa de que o foco em “melhora econômica” (que beneficiaria, na cabeça deles, primordialmente os empresários) vem sempre com o custo de jogar fora os “direitos” dos mais pobres.

Exemplo: poucos dias antes de sair do Planalto, Dilma disse que, com Temer, “A CLT vai virar letra morta”.


O direito ao saneamento básico também está previsto em lei, mas, graças à situação lastimável das contas públicas, o ritmo de investimento na área caiu e as metas de universalização do esgoto foram adiadas 20 anos. Então, que diferença faz essa lei e a propaganda política com números do PAC inflados, quando a realidade mostra que o Aedes teve céu limpo?

O ministro da Segurança diz que “nenhum direito é absoluto”, algo óbvio. A esquerda interpretou a frase como uma ameaça ao “direito à livre manifestação”, já que a polícia de São Paulo, que estava sob o comando do novo ministro até outro dia, é conhecida por reprimir violentamente protestos. Manifestações não são direitos absolutos, como a Constituição nos lembra. Mas deixemos isso de lado por um instante.

Quando as pessoas dizem que o governo interino resultaria em “menos direitos”, elas olham para o Ministro da Justiça e fixam a crítica (necessária) na polícia e em como ela seria “supressora de direitos individuais”. 
Mas esse é só um pedaço dos problemas em segurança pública e está longe de ser o maior. Sabemos que 32 das 50 cidades mais violentas do mundo estão no País, que tem mais de 10% dos homicídios do mundo. Se é para falar de direitos, como estamos em relação ao fundamental “direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”?

Quando a crise econômica faz com que policiais não tenham dinheiro para o almoço ou que, com atraso de salários, a PM entre em greve, mais gente morre. A polícia é responsabilidade estadual, é fato, mas ela sofre com a economia do País como um todo. A crise da polícia no Rio — onde policiais tiram do próprio bolso para colocar gasolina na viatura — não pode ser dissociada, por exemplo, do mau momento da Petrobras. A petroleira não ficou sem dinheiro — e sem dinheiro para investir, aumentando a possibilidade de recolher royalties — por acidente.

A queda na arrecadação dos estados — somente em Minas Gerais foi de 29% — significa que o governo tem menos dinheiro para investir na segurança da população. Especialmente porque outras áreas, como Educação, Previdência e Saúde, têm gastos mínimos garantidos no orçamento por lei. A Cultura, outra garantia no ordenamento jurídico, também é atingida.

Enfim, é difícil saber com precisão qual o impacto de mais desemprego e menos investimento em segurança nos dados de violência, mas fato é que Porto Alegre,Rio de Janeiro e Recife estão vendo mais pessoas perdendo o direito à vida.

Agora que não precisa mais defender um governo indefensável, a esquerda brasileira tem uma oportunidade gigantesca: poder olhar para o país como ele está — e não como sugere o marketing. Em um mundo ideal, o papo de “perda de direitos” pode ganhar muito mais nuance e passar para a parte mais complexa: se todos queremos esses direitos, como garanti-los, na prática? Como minimizar as perdas causadas pela recessão e garantir que os mais necessitados estejam na rede de proteção do Estado?

Ao focarmos excessivamente nas coisas “simbólicas”, como a incorporação do Ministério da Cultura ao MEC, perdemos a chance histórica de ter conversas importantes e difíceis sobre a nossa frágil tentativa de estado de bem-estar social. Nos últimos 10 dias já perdemos várias oportunidades, aliás.

Quando o novo ministro da Saúde disse que o Brasil provavelmente terá que fazer como outros países e “repactuar as obrigações do Estado porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las”, a reação foi imediata: as redes sociais encheram-se de lamentações sobre a “morte” ou o “desmonte” do Sistema Único de Saúde, orgulho do País, que já expomos aqui ser operacionalmente inviável.

O declínio recente do SUS, devido aos sucessivos cortes de verba, é amplamentedocumentado — e tem sido requentado para parecer algo que aconteceu com uma semana de governo interino. A gente pode partir dessa realidade, e não daideia do SUS, para discutir seus desafios.

Se falta dinheiro para fazer o que o SUS se propõe, não é mais realista deixar claro qual é a prioridade e as limitações para investir nas populações mais vulneráveis? Ou: em vez de ficar gritando em desespero quando o ministro falaem “repactuar o alcance”, será que a gente não pode discutir, por exemplo, a judicialização do SUS? 
O novo ministro falou desse problema, mas ninguém deu muita atenção: uma estimativa conservadora aponta que o governo gasta R$ 1 bilhão com judicialização da saúde. 
E o que seria isso? Pessoas com acesso a advogados processando o SUS para ter remédios de R$ 800 mil, ou cirurgias no exterior, com pouca chance de sucesso, por R$ 2 milhões. Octavio Ferraz e Daniel Wang disseram em um artigo para a Folha que:

“A judicialização da saúde no modelo brasileiro está criando um SUS de duas portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário, para quem “a vida não tem preço” e conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para satisfazer suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que, inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela outra porta.”

Isso precisa ser discutido. Mas não é, porque o debate é interditado pela histeria de que “mexer no SUS” é “jogar fora os direitos”. A mesma coisa para Educação: o novo ministro diz que apoiará o direito das universidades públicas deoferecerem cursos de pós graduação e extensão pagos, se quiserem. Mesmo com todos esses condicionais, a notícia é lida assim:
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Um levantamento do G1 mostrou que nove universidades federais somaram déficit de R$ 400 milhões em 2015. O orçamento do MEC sofre cortes, a arrecadação está caindo e as pessoas preferem tapar ouvidos e gritar “privatização do ensino” e “educação não é mercadoria, é direito!”, ao invés de ter uma conversa madura em busca de soluções para o caos.

Parece que não aprendemos com as eleições, porque a dinâmica é a mesma. Lembram quando Marina Silva defendeu mudanças no cálculo das aposentadorias, medida que tem mais consenso entre economistas que o aquecimento global entre climatologistas? 

Como os ministros de agora, Marina não disse na ocasião os termos de reforma, apenas que algo precisa ser feito para evitar que o Brasil seja a Grécia daqui a dez anos. Sofreu uma contra-ofensiva feroz do PT. A campanha repetiu que “não se mexe em direitos nem que a vaca tussa”, como se pudéssemos nos dar esse luxo.

Não é possível haver um debate e achar um caminho para resolver os problemas do Brasil se negarmos a realidade.

Novamente: temos agora todos a chance de olhar o Brasil do jeito que ele está, não do jeito que foi maquiado pela propaganda de João Santana. E o que vemos é um mundo de problemas graves, urgentes e, importante, de dinheiro finito.

Pode ser duro, mas os Direitos Sociais existem apenas enquanto houver dinheiro nos cofres públicos. Afinal, os recursos são escassos.

Se ficarmos gritando para “não mexer nos direitos” toda vez que conversas sérias são propostas, vamos acabar como a Venezuela: um país de letras mortas.

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