sábado, 2 de julho de 2016

Inquisição: Processo contra os mortos


Que a Igreja Católica é aficionada pelos mortos, isso todo mundo já sabe.

Há algo nos mortos que a atrai irresistivelmente, ao ponto de ter inventado a imortalidade da alma, o culto aos mortos, a oração pelos mortos, a intercessão dos mortos, o limbo e o purgatório, a missa de sétimo dia, as festas e solenidades em honra dos mortos, o dia de finados, a reza aos mortos, o uso de velas para os mortos, a missa aos mortos, a veneração às relíquias (dos mortos), as procissões com imagens (dos mortos), a canonização dos
santos (mortos), e assim por diante.

Tudo na Igreja Católica gira em torno dos mortos, mortos e mortos, beirando uma obsessão doentia por eles.

Com tanta obsessão pelos mortos, é óbvio que a Igreja iria usar a Inquisição contra eles também. Como disse Malucelli, “nem os mortos escapavam da fogueira”[1]. Palma diz que “nem aos mortos perdoava a Inquisição: diante desse implacável tribunal não valiam prescrições”[2]. Embora o direito civil da época proibisse ações jurídicas contra os mortos, a Inquisição não queria nem saber: processava o morto e arrancava os bens de seus descendentes. Sobre isso, o inquisidor Nicolau Eymerich escreve no manual:
Embora em Direito Civil seja uma regra geral que a ação contra o condenado finda com a sua morte, não tem esta lei lugar em matéria de heresia, por causa da enormidade deste crime. Poderá proceder-se contra um herege mesmo depois da morte, e declará-lo como tal, para efeitos de confiscação de bens. Tirem os bens àquele que os possua, até a terceira geração, e os apliquem em favor do Santo Ofício.[3]
Aqueles prisioneiros da Inquisição que morriam antes de irem para a fogueira no auto da fé (geralmente se matando no cárcere ou morrendo em função das torturas) também não escapavam da fogueira. Eles eram queimados em efígie, como explica Peña. O propósito disso era justamente «aterrorizar o povo»:
Em caso de condenação por contumácia, é interessante fazer uma imagem da pessoa, afixando-se o nome e a condição do condenado, e entregá-la ao braço secular para ser queimada, exatamente como se faria se o acusado estivesse presente. Não saberia dizer de quando data este admirável costume de queimar os contumazes em suas efígies. Trata-se, certamente, de uma prática posterior à época de Eymerich, senão, ele falaria disso no manual. Não há muitos indícios dessa prática na obra de outros especialistas anteriores à Eymerich que trataram do procedimento inquisitorial. Prática bastante louvável, cujo efeito aterrorizante sobre o povo é evidente, e que voltará a ser tratada quando se examinar a questão dos processos contra cadáveres.[4]
Bethencourt confirma que “esses condenados eram representados por estátuas individualizadas, vestidos de sambenitos com as insígnias e os retratos dos relaxados”[5]. Peña decreta que“persegue-se até quarenta anos depois do falecimento”[6]. Mesmo se os herdeiros fossem católicos e «cuidassem com a maior boa vontade dos bens do herege», “serão despojados em proveito do fisco eclesiástico ou civil”[7]. E em 1488, o famoso Torquemada ordenou que os filhos e netos dos hereges já falecidos fossem banidos de todos os cargos oficiais[8].

Ainda falando de mortos, a Inquisição excomungava quem desse sepultura a um herege. E se tal coisa acontecesse, a pessoa era obrigada a desenterrar o corpo em público e com as próprias mãos[9]. Nem os mortos eles deixavam dormir em paz. Até o apologista católico João Gonzaga, tão acostumado a mentir para salvar a Inquisição, admite neste caso:
Cabe observar ainda que o fato de já haver falecido não poupava um herege à merecida punição. Se se suspeitava que alguém, já morto, fora herege, abria-se o processo inquisitorial, onde ele podia ser condenado às sanções cabíveis, inclusive à pena máxima. Desenterrado então o cadáver, ou o que deste restasse, realizava-se macabro cortejo pelas ruas, até o patíbulo, onde era procedida à incineração.[10]
Leonardo Boff, também católico, comenta:
Outro exemplo charmoso é o processo contra mortos denunciados de heresia. Para isso, “não há limite de tempo”, diz o manual [de Eymerich]. O morto é processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua memória: “Os filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo público ou privilégio” (parte III, 22). E a efígie do condenado já falecido é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos contra eles. Sob o papa Clemente VI (1342-1352), por exemplo, em Béziers, foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadáver do frei Pedro João, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de herege, o frade já morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e os queimaram (parte I, 12).[11]
Todo mundo conhece a história do pré-reformador John Wycliffe, que, já morto, foi condenado herege pelo Concílio de Constança, em 1418. Mas isso não era suficiente: o referido concílio mandou abrir o sepulcro do reformador, queimar seus restos mortais e jogar as cinzas em um córrego perto de Lutterworth[12]. Neste caso, os inquisidores chegaram tarde demais para queimá-lo enquanto vivo, mas como eram muito esforçados e competentes conseguiram chegar a tempo de queimar seu cadáver. A Inquisição não brincava em serviço.


Paz a todos vocês que estão em Cristo.

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