domingo, 2 de abril de 2017

Os negócios secretos da ditadura comunista da Coreia do Norte


Apesar de sanções, ouro e dinheiro ainda entram no país, e companhias e bancos seguem agindo no mercado financeiro internacional – tudo com a ajuda de uma rede de intermediários, empresas de fachada e diplomatas.


O presente de aniversário era generoso: todos os anos, no dia 16 de fevereiro, o North East Asia Bank era obrigado a depositar 20 milhões de dólares na conta do aniversariante, o ex-ditador norte-coreano Kim Jong-il.

"Esta era a nossa tarefa: angariar dinheiro para a liderança", explica Kim Kwang-jin, que por muitos anos foi o diretor do banco em Pyongyang. "O North East Asia Bank era ligado a uma seguradora e ganhava dinheiro vendendo seguros. No topo estava Jang Song-thaek, o tio de Kim Jong-un que foi recentemente executado."

Kim Kwang-jin diz que nunca encontrou pessoalmente o então ditador e apenas enviava a ele um relatório mensal. E ele fazia bem o seu trabalho. Tão bem que, em 2002, foi enviado ao exterior para dirigir a subsidiária do North East Asia Bank em Cingapura.

"Ao contrário dos trabalhadores comuns, os diplomatas e outros representantes oficiais podem levar consigo seus parentes mais próximos", explica ele, que deixou o país com a esposa e o filho.

Mas seu período à frente da subsidiária foi curto. Poucos meses depois, ele entrou na mira das autoridades norte-coreanas. "Meus superiores me comunicaram que informações sigilosas sobre a liderança norte-coreana haviam sido enviadas de Cingapura para os serviços secretos americano e japonês", relata. De um dia para o outro, ele passou a ser suspeito de traição à pátria.

Informações sigilosas

Kim Kwang-jin nega a acusação, apesar de afirmar que, já naquela época, não via o sistema norte-coreano com bons olhos. Mas falar sobre isso era tabu absoluto. Ciente da punição que o esperava em seu país por causa da suspeita de traição, ele fugiu com a esposa e o filho para a Coreia do Sul.

Desde então vive em Seul, onde trabalha para o Instituto Nacional de Estratégia de Segurança, um centro de estudos. Ele recebeu ameaças de morte da Coreia do Norte, e, durante um tempo, esteve sob proteção constante de seguranças.

Afinal, o que ele faz não agrada à liderança norte-coreana. Ele relata tudo o que ficou sabendo, repassa informações de quem fazia parte do sistema. Ele conta sobre as medidas de segurança onipresentes e a paranoia constante. Por exemplo, que ele e seus colegas tinham a ordem de destruir imediatamente todas as atas e documentos que recebiam, que ninguém sabia o que os outros faziam, nem mesmo dentro da mesma empresa.

"Toda informação sobre o nosso banco e os nossos negócios com seguros era estritamente sigilosa. Ninguém podia saber quanto dinheiro se ganhava e para onde ele ia", conta.

E aí ele fala sobre o famoso Room 39. Era lá que paravam todos os rendimentos, e não apenas os de seu antigo banco. Por trás desse nome discreto se esconde uma organização subordinada diretamente à família Kim e que tem como principal tarefa acumular divisas para a liderança, por meio dos mais diversos canais e negócios.

"Tudo isso remonta aos anos 1970 e foi criado por Kim Jong-il. Ele procurava uma maneira de juntar dinheiro para comprar a lealdade da elite", diz Kim Kwang-jin. O futuro ditador precisava dessa lealdade para criar e ampliar seu poder.

Kim Jong-un
Jang Song-thaek (círculo) foi executado a mando do sobrinho, o ditador Kim Jong-un

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Presentes cada vez mais caros

Naquela época, já era certo que Kim Jong-il seria o sucessor de seu pai, Kim Il-sung. Ao longo das próximas décadas, ele criou uma economia virtual paralela, completamente desvinculada da economia arruinada do país e que se baseia em negócios financeiros, na exportação de matérias-primas e foguetes e na importação de artigos de luxo. Estes ele comprava em grande estilo e os usava para presentear aqueles que se mostravam fiéis.

Tal "política dos presentes" tinha um porém: cada novo presente tinha de ser maior e mais imponente que o anterior, do contrário seria visto como uma afronta. Isso significava que Kim Jong-il precisava de cada vez mais dinheiro para satisfazer seus apoiadores.

Até hoje o sistema funciona assim, explica o especialista em segurança e defesa Michael Raska, da S. Rajaratnam School of International Studies, de Cingapura. Trata-se de um círculo vicioso difícil de ser quebrado, e no qual as regras se alteraram nos últimos anos. Nos tempos de Kim Jong-il, a Coreia do Norte ganhava muito dinheiro com as exportações de foguetes balísticos, explica Raska. Hoje, por causa das sanções econômicas, isso não é mais possível.

"Ainda existe comércio de armas, mas de armas pequenas e sistemas armamentícios. Exportações de tecnologia de foguetes não são mais possíveis", comenta. Os mercados compradores estão na África, na Ásia e no Oriente Médio.

"Muita coisa mudou por causa das sanções, e isso vale também para as importações de artigos de luxo", afirma Raska. Muitos produtos que antes podiam ser importados livremente estão hoje nas listas de sancionados. Por isso, Kim Jong-un aposta cada vez mais em outras recompensas para comprar a lealdade de seus apoiadores, e faz questão de divulgar isso por meio da imprensa.

"Quem acompanha as notícias na televisão norte-coreana vê quase sempre que alguém acabou de ser presenteado com um apartamento. Aliás, está se construindo muito em Pyongyang", diz o especialista.

Para Kim Jong-un, reunir divisas tem um caráter ainda mais existencial do que para o seu falecido pai, comenta Raska. E isso tem a ver com a idade do ditador. Numa sociedade rigorosamente confuciana, como é a coreana, ele não teria de fato o direito de dar ordens a pessoas mais velhas. Diante disso, a necessidade de afirmar seu poder se torna ainda maior, e Kim Jong-un tenta resolver essa situação adotando uma linha dura, que não poupa da execução nem mesmo parentes.

Práticas comerciais sigilosas

"A pressão de fora é cada vez maior. Kim Jong-un segue a dupla estratégia de impulsionar tanto a economia como o desenvolvimento do programa nuclear. Para isso, ele necessita de dinheiro, ainda mais do que Kim Jong-il. Só que as sanções tiram cada vez mais recursos dele", afirma Raska.

Desde o primeiro teste nuclear, em 2006, o Conselho de Segurança das Nações Unidas já determinou seis rodadas de sanções, duas delas depois dos dois testes no ano passado. Ainda assim, a Coreia do Norte consegue contorná-las por meio de práticas comerciais sigilosas.

Em fevereiro, um grupo de especialistas das Nações Unidas divulgou um documento de cem páginas sobre o assunto. Nele é explicitado, por meio de uma série de nome e exemplos, como a Coreia do Norte consegue, apesar de todas as restrições, obter artigos proibidos ou exportar produtos sancionados, como minerais. O papel central é desempenhado por intermediários e empresas de fachada, sobretudo na China e na Malásia.

"Uma série de empresas e bancos norte-coreanos continua operando apesar das sanções. Eles utilizam agentes treinados no transporte de bens e de dinheiro pelas fronteiras", afirma o relatório. E, apesar das sanções financeiras cada vez mais rígidas, a Coreia do Norte continua tendo acesso ao sistema bancário internacional.

"Bancos norte-coreanos dispõem de representantes e contas no exterior e também mantêm joint ventures por lá. Para suas operações e atividades, eles usam uma rede ampla e entrelaçada. Eles disfarçam suas atividades usando cidadãos e empresas estrangeiros. Isso tudo lhes permite continuar fechando negócios em centros financeiros internacionais de ponta", diz o documento.

Diplomatas como contrabandistas


Os autores do relatório afirmam que os países-membros da ONU devem "ficar extremamente alertas em relação a diplomatas norte-coreanos". Eles são utilizados como carregadores para levar ao país grande quantidade de dinheiro vivo, ouro e joias.

A razão é simples: eles desfrutam de imunidade diplomática, e o transporte de ouro e dinheiro permite contornar completamente o setor financeiro. Essa prática cria brechas por onde passam milhões. "Os diplomatas norte-coreanos têm a missão de conseguir dinheiro vivo. Há até mesmo cotas de quanto cada um deve enviar para o país", afirma Raska.

Isso é confirmado pelo ex-diplomata norte-coreano Hong Soon-kyung. Num documentário da emissora japonesa NHK, o antigo funcionário da embaixada da Coreia do Norte na Tailândia afirma que muitos de seus colegas participavam dessas atividades. "Usávamos nossos passaportes diplomatas para contrabandear ouro, já que não precisávamos passar pela alfândega."

O caso de outro diplomata, Son Young-nam, dá uma ideia da dimensão desse contrabando. Os funcionários da alfândega de Bangladesh devem ter ficado estupefatos quando, em março de 2015, revistaram a pesada bagagem de mão do primeiro-secretário da embaixada da Coreia do Norte em Daca e encontraram 27 quilos de ouro e mais joias no valor de 1,4 milhão de dólares. 

Naquele dia, Son Young-nam já havia feito uma outra viagem: ele fora de Daca para Cingapura, ficou três horas por lá, nos arredores do aeroporto, e retornou logo em seguida.

"Nos 15 meses anteriores, ele fez, em média, uma vez por mês viagens como essa a partir de Daca ou Pequim, o que faz supor que ele era constantemente usado como mensageiro diplomático para contrabandear ouro e outros bens proibidos pelas sanções", afirma o relatório da ONU.

Os privilegiados do sistema


Kim Kwang-jin acompanha com atenção as notícias sobre contrabando e negócios ilegais envolvendo a Coreia do Norte e se lembra dos tempos em que trabalhava para a liderança norte-coreana.

"Nós chamávamos isso de 'pegar o dinheiro no ar'", lembra. Fazer parte desse sistema dava muitas vantagens. "Tínhamos os melhores empregos, as melhores residências, éramos bem tratados."

Ele saiu da Coreia do Norte há 15 anos, mas não consegue deixar a sua terra natal para trás. Afinal, uma questão cruel permanece: o que aconteceu com quem ficou no país? Com os avós, os pais ou irmãos? Na Coreia do Norte, a família também paga pelos erros de um parente.

Kim Kwang-jin conta que nunca teve coragem de tentar descobrir onde estão seus parentes nem de contactá-los. "Não faço a menor ideia se eles foram punidos ou se foram enfiados num campo de prisioneiros", diz. Esse é o único momento em que ele se mostra hesitante.

Mesmo assim, Kim Kwang-jin afirma que nunca se arrependeu de ter trocado de lado. Ele pôde levar consigo as duas pessoas mais importantes para ele – sua mulher e seu filho. Ele diz ter consciência de que é um privilegiado. A maioria dos refugiados norte-coreanos que atravessa a fronteira com a China e tenta seguir adiante a partir de lá não teve a mesma oportunidade.


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