Por Franklin Ferreira
1. O autor não define o que é o semipelagianismo e o semiagostinianismo. Em linhas gerais, o primeiro ensina que a graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas na salvação, e o homem deve tomar a iniciativa; a fé e o arrependimento são obras humanas, sendo consideradas pré-requisitos para se receber o Espírito. O segundo ensina que a graça de Deus se estende a todos, capacitando uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação; a fé e o arrependimento são dons do Espírito. Os irmãos Wesley e a tradição arminiana evangélica são, em linhas gerais, semiagostinianos; mas o semipelagianismo (e o pelagianismo) permanece, tristemente, bem presente na igreja brasileira. 2. O autor se propõe fazer exegese de duas passagens bíblicas, 1Timóteo 2.4 e 1João 2.2. A exegese pode ser definida como “um estudo analítico completo de uma passagem bíblica [em seu contexto], feito de tal forma que se chega à sua interpretação útil. (...) [É a] investigação histórica do significado de um texto bíblico” (Stuart & Fee, Manual de exegese bíblica, p. 23, 25). À luz desta definição, o autor não oferece uma exegese das passagens bíblicas que ele propõe tratar. No caso de 1Timóteo 2.4, ele incorre na falácia do argumento da autoridade (argumentum ad verecundiam) ao apelar a C. H. Spurgeon (sem citar a fonte), para atacar certa interpretação da frase “todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”. Mas o autor retira a citação do contexto polêmico onde foi proferida, aplicando-a a outro assunto.
A fonte que autor cita é um trecho de um sermão citado em Spurgeon versus hipercalvinismo (p. 170-176), de Iain Murray. Quando lido em contexto, isto é, como uma crítica ao hipercalvinismo, vê-se que o pregador inglês reconheceu que não saberia como harmonizar a explicação oferecida com suas crenças: “E igualmente sei que Ele tem um povo que vai salvar, um povo que Ele escolheu por Seu amor eterno, e que por Seu poder eterno Ele vai libertar.
Não sei como aquilo se enquadra nisso; essa é outra das coisas que não sei” (alguns calvinistas têm seguido a Spurgeon, e tem falado de duas vontades ou maneiras de querer de Deus, para explicar tal paradoxo – noção admitida, inclusive, por exegetas arminianos, como I. Howard Marshall. Cf., por exemplo, John Piper, Deus deseja que todos sejam salvos?). De qualquer forma, fico pensando se o autor endossaria com tanto fervor o que Spurgeon afirmou em seus sermões, como “Eleição” ou “Verdades chamadas calvinistas: uma defesa”, sobre a expiação limitada ou sobre o arminianismo.
Sobre o significado de “todos os homens” nesta passagem, o contexto já o esclarece, em 1Tm 2.3: “Exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade”. “Todos os homens”, portanto, deve ser interpretado como “todo tipo de homem”, inclusive “dos reis” e dos que “se acham investidos de autoridade”.
Em 1João 2.2, o autor concentra-se apenas no significado da palavra “mundo”, cometendo o erro hermenêutico conhecido como “transferência de totalidade”. Por outro lado, ele não trata da palavra mais importante da passagem, “propiciação”. Se ele interpretar esta palavra com seriedade, ele só poderá chegar a duas conclusões:
(1) que os pecados de todos já foram propiciados por Cristo, logo todos os homens que existiram, existem e existirão já estão perdoados e salvos por Cristo;
(2) que Cristo propiciou apenas o pecado original de todos os homens que existiram, existem e existirão, mas não os pecados atuais. Outra possibilidade é reinterpretar o significado do vocábulo “propiciação” – o que muitos arminianos têm feito durante a história da igreja, abandonando, com isso, a doutrina da substituição penal e afirmando a teoria governamental da expiação (defendida por Hugo Grotius, em A verdade da religião cristã, a primeira obra de apologética protestante, publicada em 1622-27).
Para aqueles interessados na exegese que fiz dessas passagens, recomendo consultar as seções apropriadas da Teologia Sistemática que escrevi com Alan Myatt. 3. No campo da história da teologia há uma série de citações sem fontes documentadas, o que torna difícil conferi-las. Isso se torna um problema quando o autor trata do Sínodo de Dort – e, nesta, parece que o autor usou a falácia do argumento contra a pessoa (argumentum ad hominem), para desqualificar o calvinismo. Algumas questões gerais: (i) como dito, não há citação das fontes que embasam várias das afirmações do autor. Isso acontece tanto quando ele cita autores que criam na predestinação, mas não criam na expiação limitada (como se isso fosse realmente surpreendente ou novo), quanto ao tratar do Sínodo de Dort; (ii) seria interessante que o autor referenciasse sua posição especialmente com fontes primárias (por exemplo, foi lançado recentemente o primeiro volume das Acta et Documenta Synodi Nationalis Dordrechtanae [1618–1619], editado por Donald Sinnema, Christian Moser e Herman Selderhuis [2014]) e que colocasse a controvérsia em contexto. Ainda que ele reconheça as questões políticas e sociais que fornecem o pano de fundo do debate teológico (os arminianos estavam conectados à burguesia e às classes mais ricas; os calvinistas estavam ligados aos pobres e aos estrangeiros exilados), essa questão importantíssima não é desenvolvida; (iii) o estudo da história é importante, mas não pode ser utilizado para “provar algo”. Tal uso torna a citação da história mera ferramenta política. E o risco é que aquele que assim proceda cite dados e fatos históricos adaptando-os para seus próprios fins (cf. Tony Judt, Pensando o Século XX, p. 267-301); (iv) talvez, por esta razão, o autor não informa aos seus leitores que, diferente do que ele afirma, isto é, que “a disposição raivosa (...) que o Sínodo de Dort dispensou ao ancião arminiano Van Oldenbarneveldt (sic), crente, irmão de fé, que foi decapitado e teve seus bens confiscados”, foi uma ação do Estado – não do Sínodo. O jurista Johan van Oldenbarnevelt não foi executado por ser arminiano, muito menos por ordem do Sínodo.
Ele, que havia sido preso em agosto de 1618 (três meses antes do início do Sínodo), foi executado em maio de 1619 (quatro dias após o encerramento do Sínodo). Tudo isso aconteceu sob o mando dos Estados-Gerais (o parlamento), por ele ter se envolvido numa tentativa de dividir o país que há pouco havia alcançado a independência da Espanha, incitando rebelião na província da Holanda, a região mais rica e poderosa dos Países Baixos (Grotius, que fugiu espetacularmente para Paris em 1621, foi preso pela mesma razão).
Um adendo: em 1623, os dois filhos de van Oldenbarnevelt se envolveram, junto com o pastor arminiano Hendrick Danielsz Slatius, numa conspiração para assassinar Maurício de Nassau. Mas a conjuração foi descoberta, e, como resultado, um deles (Reinier) foi executado e o outro (Willem) conseguiu fugir para a Espanha, onde se tornou católico. Slatius também foi executado – ele renegou suas convicções arminianas para evitar a pena de morte, mas depois voltou atrás, quando viu que sua abjuração não mudaria a decisão dos Estados-Gerais. Um detalhe importante é que, enquanto os reformados entendiam que era a igreja que deveria decidir em matéria doutrinal, os arminianos achavam que o Estado deveria ter a última palavra na esfera eclesiástica. Em outras palavras, os calvinistas queriam uma igreja independente do controle do Estado, e os arminianos almejavam uma igreja inclusiva, controlada pelo Estado. E, para tornar a situação mais complicada, havia boatos de que os arminianos estavam conspirando com os espanhóis, que queriam reconquistar as províncias (a guerra entre as duas nações, que estava interrompida desde 1609, recomeçou, efetivamente, em 1621). De qualquer forma, o problema maior não era o calvinismo, mas o erastianismo, que está por trás da ideia de igrejas nacionais. Em outro contexto, na Inglaterra, William Laud, quando bispo de Londres e, depois, arcebispo da Cantuária, perseguiu severamente os puritanos, pois ele queria “arminianizar” a Igreja da Inglaterra, ao mesmo tempo que reforçava o absolutismo de Charles I. Terminou executado por traição, por decisão do Parlamento, em 1645.
Em 1662, dois anos após o rei Charles II ser entronizado, dois mil pastores puritanos foram expulsos da Igreja da Inglaterra por não aceitarem vários dos ritos prescritos no Livro de Oração Comum. Muitos, inclusive, foram presos nos anos seguintes por insistirem em pregar. Somente em 1689, com a Revolução Gloriosa, assegurou-se tolerância religiosa aos puritanos ingleses (conhecidos então como não-conformistas). Nos dois casos, o problema foi o arminianismo? Não, foi o erastianismo, a noção de que o Estado tem a prerrogativa de dirigir a igreja nacional;
(V) O autor parece não entender que o contexto do Sínodo é o fato de que a Igreja Cristã Reformada era uma igreja estatal e sinodal; sobre a relação entre igreja e Estado, a questão está esboçada acima; sobre o segundo, todos os pastores da Igreja Cristã Reformada (inclusive J. Arminius) juraram lealdade à Confissão Belga e ao Catecismo de Heidelberg; portanto, os pastores que aderiram ao arminianismo incorreram em perjúrio ao ensinar de forma diversa e tentar modificar os documentos confessionais, daí os desdobramentos disciplinares do Sínodo: ao fim do mesmo, os pastores arminianos foram excluídos da igreja (os números variam de acordo com as fontes, entre 100 e 200).
Mas, pouco tempo depois, em 1630, o Estado holandês concedeu-lhes liberdade religiosa e de expressão, e eles puderam fundar igrejas e escolas na Holanda.
4. Por fim, o autor se mostra desconcertado porque destaquei algumas conexões entre o arminianismo e o arianismo. É fato que alguns teólogos arminianos se afastaram das decisões conciliares antigas sobre a Trindade e a encarnação do Verbo.
Isso ocorreu na Holanda, no século 17, por influência de Philipp van Limborch (e foi reconhecido por Roger Olson, que os chama de “arminianos racionalistas e liberais” ou “arminianos de cabeça”, em seu irregular Arminianismo, p. 192, 271, etc.); Na Inglaterra, no século 18, muitas das igrejas batistas gerais (arminianas) se tornaram unitarianas; nos Estados Unidos, na região de Boston, as igrejas congregacionais que se tornaram arminianas, aderiram ao unitarianismo e ao universalismo, no século 19 – e algumas destas igrejas existem até hoje.
Na atualidade, os arminianos holandeses (conhecidos como Irmandade Remonstrante) são ligados à European Liberal Protestant Network, uma associação que congrega igrejas europeias de confissão liberal – inclusive comunidades unitarianas da Inglaterra, Hungria e Transilvânia.
***______________ OUTRAS FONTES: • Earle E. Cairns, O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. • Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês 1630-1654. • Joel Beeke e Sinclair Ferguson, Harmonia das confissões reformadas. • John H. Leith, Tradição reformada. • Justo L. Gonzalez, História ilustrada do cristianismo, v. 2. • Justo L. Gonzalez, Uma história do pensamento cristão, v. 3. • Sinclair B. Ferguson e David F. Wright, Novo dicionário de teologia. Fonte: Perfil do autor no Facebook - Publicado no blog Bereianos com permissão do autor. |
Posted: 02 Jun 2015 04:00 AM PDT
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***(Análise exegética de 1 João 2.2 e 1 Timóteo 2.4) As controvérsias teológicas são importantes porque elas nos fazem ver os lados obscuros que determinado teólogo não demonstrou. Seja por falta de conhecimento, que, nesse caso, seriam de Hermenêutica e Exegese, seja por desonestidade intelectual vindo de uma defesa apaixonada por determinado assunto, seja por não querer se aprofundar no outro lado da questão. O texto da revista Obreiro Aprovado, ano 36, nº 68 de autoria do Pr. Silas Daniel trouxe uma resposta do renomado teólogo batista Franklin Ferreira demonstrando as falhas históricas, teológicas e exegéticas desse autor (veja aqui). Como resposta ao teólogo Franklin Ferreira, um teólogo arminiano chamado Zwinglio Rodrigues, cujo blog dedica-se a escrever e defender essa doutrina, tenta refutá-lo com o tema “Comentários e respostas à crítica de Franklin Ferreira ao artigo ‘Em Defesa do Arminianismo”. A resposta do teólogo no blog me causou admiração por vários motivos. Primeiro, pela frase de Tomás de Aquino no blog ao lado: “Para mim, tudo que escrevi parece palha”. Na verdade, essa frase me livrou de dar algum parecer sobre o seu texto, senão, de apenas concordar com essa frase no seu blog. Depois, admirei-me também pela falta de referências, sendo que estava trazendo uma refutação histórica, teológica e exegética a uma refutação de um teólogo. O que impressiona mais ainda é que o autor se justifica por afirmar que o seu texto era apenas informal. No entanto, não se trata de formalidade ou informalidade, mas de credibilidade das citações, mesmo que sejam informais. O próprio Franklin Ferreira, apesar de ter postado em seu Facebook, não deixou de colocar referências, mesmo de uma maneira informal. Demonstra-se, com isso, que o autor tem uma debilidade muito grande em perceber esse aspecto. O outro motivo que me impressionou foi o simplismo e a superficialidade dos argumentos exegéticos desse autor (com todo respeito). O autor critica a frase de Franklim Ferreira que afirmou: “exegese, exegese e mais exegese” e, pareceu-me, que o autor, com isso, quis mostrar que ele, sim, a partir daquele texto, faria uma exegese. Ele escreve: Ferreira crítica Daniel por apresentar textos-prova para suas afirmações e não oferecer nenhuma discussão lexical e/ou exegética. Não vou entrar no mérito da reprimenda. Mas, entendendo (acredito que Daniel também) a importância de uma abordagem exegética dos textos bíblicos, conforme destaca Ferreira. Por isso, desejo apresentar aqui duas referências bíblicas pinçadas do artigo de Daniel que atestam a doutrina da expiação ilimitada, uma doutrina cara ao arminianismo clássico. Tais escrituras não serão dadas apenas como textos dos quais se presume a expiação ilimitada, mas sofrerão uma análise exegética e lexical. O autor citou dois textos-chave para a doutrina arminiana que nega a expiação limitada. Com isso, ele deu a entender que a partir daquele momento iria fazer uma exegese começando por 1 Timóteo 2.4. Porém, parece que o autor não sabe o que é exegese, pois, para a sua exegese de 1 Timóteo 2.4, ele simplesmente cita a opinião de Charles Spurgeon. Isso mesmo: apenas a opinião de Spurgeon. Se ele trouxesse a exegese de Spurgeon, seria mais compreensivo. No entanto, o autor traz apenas a sua opinião. Esse tipo de argumento faz parte de uma falácia chamada “falácia da autoridade”. Essa falácia demonstra que o argumento está apenas baseado na opinião de uma autoridade e nenhum argumento lógico é desenvolvido para demonstrar o contrário. A base exegética de Spurgeon do texto é apenas superficial da expressão “todos os homens” sem nenhuma exegese do texto em questão e o autor Zwinglio apenas o reproduz sem desenvolver absolutamente nada e sem dar nenhuma referência. No entanto, o problema da falácia da autoridade é que, se o autor se baseia apenas na autoridade da pessoa que usou como base, ele também deve aceitar outras afirmações do mesmo autor, já que ele o tem como base de argumento, inclusive da mesma área que é a Soteriologia. Então, vamos ver o que Charles Spurgeon pregou e escreveu sobre o assunto. Afinal de contas, se Spurgeon está certo na sua interpretação de 1Tm 2.4, por que não estaria nas demais, já que não houve argumento por parte do autor? Vejamos o que Spurgeon pregava e escrevia, pois esses textos vêm de suas pregações. 1. Sobre o livre-arbítrio: Já foi provado além de toda controvérsia que o livre-arbítrio é uma tolice. A liberdade não pode pertencer ao arbítrio como a ponderação não pode pertencer à eletricidade. Podemos crer em um agente livre, porém, o livre-arbítrio é simplesmente ridículo. É bem conhecido de todos que a vontade é dirigida pelo entendimento, movida por motivos, conduzida por outros componentes da alma e considerada como algo secundário. Tanto a filosofia como a religião descartam de uma vez a ideia de livre-arbítrio: e eu vou tão longe quanto Martinho Lutero, em sua forte afirmação, onde ele diz: “se algum homem, de alguma maneira, atribuir a salvação ao livre-arbítrio do homem – mesmo a ínfima parte – nada sabe sobre a graça e não conheceu Jesus Cristo corretamente” (SPURGEON, 1994, p. 1-2). 2. Sobre a Eleição e predestinação: Spurgeon cita e concorda com a antiga confissão Batista: Abro agora este antigo livro, e encontro o seguinte terceiro artigo: “Por decreto de Deus, tendo em vista a manifestação de sua glória, alguns homens e anjos foram predestinados ou ordenados de antemão para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, para o louvor de sua gloriosa graça; e, quanto aos demais, foi-lhes permitido continuarem em seus pecados, tendo em vista a sua justa condenação, para o louvor da gloriosa justiça divina. Esses anjos e homens, assim predestinados ordenados com antecedência, foram particular e imutavelmente designados, e o seu número foi determinado de maneira tão certa e definida com esse total não pode ser nem aumentado e nem diminuído. No caso daqueles membros da humanidade que foram predestinados para a vida, Deus, antes de serem lançados os fundamentos do mundo e conformidade com o seu eterno e imutável propósito, bem como de acordo com o secreto conselho e beneplácito de sua vontade, escolheu em Cristo, para a glória eterna e com base em sua pura graça gratuita e em seu amor, sem que houvesse qualquer outra consideração na criatura como condição ou causa que OU tivesse impelido a isso, aqueles a quem assim o quis”. Não obstante, no que concerne a esses testemunhos humanos autoritativos, não me importa sequer com eles. Não me interessa o que esses testemunhos afirmam em favor ou contra a doutrina da eleição. Tão somente lancei mão deles como uma espécie de confirmação para a vossa fé, afim de mostrar a vocês que, embora eu possa ser acusado de um herege ou de um hipercalvinista, em última análise, o testemunho mesmo da antiguidade está me prestando o seu apoio (SPURGEON, 1994, P. 8-9). 3. Sobre a perseverança dos santos Demais disso, quero que vocês se lembrem que hoje somos vistos por Deus da mesma maneira como sempre éramos vistos. Ele já nos viu desde o princípio, sujeitos ao pecados, caídos e depravados, e mesmo assim prometeu fazer-nos o bem. Ele me viu arruinado pela queda, no entanto, me amou, apesar de tudo. E se hoje sou pecaminoso, se hoje preciso gemer por causa da minha natureza maligna, simplesmente estou onde eu estava quando ele me escolheu, e me chamou, e me redimiu pelo sangue de seu Filho. “porque Cristo, quando ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios” (Rm 5.6). Éramos objetos não-merecedores da sua misericórdia a qual ele nos outorgou somente pelo motivo que estava dentro de sua própria natureza; e se continuarmos não merecendo, segue se que sua graça continua sendo a mesma. Se for assim, que ele ainda lida conosco através da graça, fica evidente que ainda nos vê como não-merecedores. E porque ele não iria fazer o bem a nós conforme fez de início? Certamente, se a fonte é a mesma, a corrente continuará fluir. (SPURGEON, 1994, p. 12-13) Esses textos de Spurgeon expostos são para demonstrar, apenas, que ele é uma das pessoas que um Arminiano jamais deveria fazer referência para defender o Arminianismo, e muito menos usando a falácia da autoridade baseado nele. No entanto, a última palavra nunca será do homem, mas será sempre da Escritura. Da mesma forma que, antes de Spurgeon, Calvino já defendia nas suas Institutas que o “todos os homens” de 1Tm 2.4 se referia a grupos de homens como no contexto do verso primeiro (Institutas, Livro III, p. 442). Portanto, precisamos analisar as Escrituras dando motivos exegéticos e lógicos por que eles estariam certos e não somente devemos nos basear em seus argumentos. Interpretação de 1Timóteo 2.4 1 Timóteo 2:4 “o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade.” ος παντας ανθρωπους θελει σωθηναι και εις επιγνωσιν αληθειας ελθειν Calvino usa uma lógica exegética perfeita, pois a expressão παντας ανθρωπους traduzida para “todos os homens” deve ser interpretada dentro do mesmo contexto que o verso primeiro: 1 Timóteo 2:1-2 “Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda piedade e respeito.” παρακαλω ουν πρωτον παντων ποιεισθαι δεησεις προσευχας εντευξεις ευχαριστιας υπερ παντων ανθρωπων Paulo exorta que façam súplicas e orações por todos os homens (υπερ παντων ανθρωπων). Com certeza, esse “todos os homens” não se refere cada homem da face da terra, pois seria uma ordenança impossível. O sentido é que a Igreja ore também pelos reis e aqueles que estão investidos de autoridade (v.2). O que Paulo está ordenando é que a igreja se dedicasse a orar pelos imperadores e reis que eram ímpios, inclusive sendo a causa da prisão de Paulo, cuja prisão veio pela ordem destes governantes. O que Paulo afirma no verso quatro é a conclusão que vinha defendendo nos versos anteriores que Deus quer que todos os homens sejam salvos, ou seja, todas as classes, incluindo reis, imperadores, escravos, homens mulheres, crianças, pois os judeus faziam acepção de pessoas influenciando a igreja no primeiro século. Gálatas 3:28-29 “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa.” 1 Pedro 1:17 “Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação,” Portanto, Calvino está com razão em fazer a sua exegese diante da análise acima demonstrada. Com respeito ao segundo texto, o autor seguiu alguns passos exegéticos e, por isso, eu me dedicarei mais a esse texto. Primeiro, porque ele é um texto de difícil interpretação que exigirá um conhecimento mais exegético. Depois, pretendo demonstrar que a análise do autor Zwinglio do texto de 1Jo 2.2 está cheia de dificuldades exegéticas. Análise da palavra ὅλου A palavra ὅλος quer dizer “inteiro, completo, todo”. O autor está correto em citar os eruditos que traduzem essa palavra. No entanto, essa palavra, assim como os pronomes indefinidos “todo, tudo”, deve ser interpretada segundo o seu contexto, pois, caso contrário, pode-se ter uma grande distorção. Por exemplo: Atos 10:22 “Então, disseram: O centurião Cornélio, homem reto e temente a Deus e tendo bom testemunho de toda a nação judaica, foi instruído por um santo anjo para chamar-te a sua casa e ouvir as tuas palavras.” οι δε ειπον κορνηλιος εκατονταρχης ανηρ δικαιος και φοβουμενος τον θεον μαρτυρουμενος τε υπο ολου του εθνους των ιουδαιων εχρηματισθη υπο αγγελου αγιου μεταπεμψασθαι σε εις τον οικον αυτου και ακουσαι ρηματα παρα σου Lucas usa o mesmo adjetivo ὅλου que a RA traduziu como “toda a nação judaica” - υπο ὅλου του εθνους των ιουδαιων εχρηματισθη Ninguém, em uma sã consciência, iria entender que Lucas estivesse afirmando que toda a nação de Israel, incluindo cada pessoa que habitava na região de Israel e em todos os tempos, conheciam Cornélio. Isso seria um absurdo! No entanto, o texto deixa claro que ele era conhecido por toda ὅλου a nação de judeus. Pelo contexto, deve-se entender que Cornélio era conhecido pelos judeus da sua região, pois o próprio Pedro seria excluído desse adjetivo porque ele não o conhecia. Depois, o autor Zwinglio usa o texto de 1Jo 5.19 para defender que a interpretação de “mundo inteiro” significa cada pessoa do mundo e não somente os eleitos. 1 João 5:19 “Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno.” οιδαμεν οτι εκ του θεου εσμεν και ο κοσμος ολος εν τω πονηρω κειται O autor usou um princípio hermenêutico correto, pois ele buscou a análise da palavra no mesmo livro, citando a base disso o Rev. Augustus Nicodemus que é uma autoridade em Hermenêutica. No entanto, dificilmente o Dr. Augustus Nicodemus concordaria com a sua análise no verso em si. O autor acertou no princípio de interpretação, mas errou em outros no próprio verso. Primeiro, o autor acertou em demonstrar que a expressão ο κοσμος ὅλος se refere a pessoas e não ao sistema maligno. Pode-se perceber isso pelo contexto do verso 18 que está falando de pessoas, daqueles que não vivem pecando e que guardam a si mesmo, e o Maligno não lhe toca. Portanto, está correta a interpretação que se refere a pessoas. No entanto, se o autor interpretar a expressão ο κοσμος ολος como incluindo todas as pessoas sem exceção, o autor tem que admitir que ele mesmo jaz no maligno, ou seja, ele está nas mãos do maligno, pois segundo a sua interpretação, a expressão precisa ter o mesmo significado que 1Jo 2.2. Caso contrário, a sua citação e argumentação não tem sentido. Precisamos notar que autor não usou o princípio Hermenêutico que ele mesmo defende para a sua análise de 1Jo 5.19, pois fica claro que a expressão “ο κοσμος ολος” se refere somente aos incrédulos, pois João, no verso 18, afirma que o Maligno não os toca e ele começa o verso 19 afirmando “sabemos que somos de Deus” (οιδαμεν οτι εκ του θεου εσμεν). Essa expressão tem a preposição εκ que significa “sair” demonstrando que se refere àqueles que nasceram de Deus, porém, o mundo, ou seja, os incrédulos estão nas mãos do Maligno. Portanto, a análise do autor de que a expressão “ολου του κοσμου” significa todas as pessoas sem exceção é completamente deficiente e digna de total rejeição pelos motivos hermenêuticos e exegéticos apresentados acima. Mas afinal de contas, o que João queria falar no verso e o que significa a expressão ολου του κοσμου? A Interpretação de 1 João 2.2 1 João 2:2 “e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.” και αυτος ιλασμος εστιν περι των αμαρτιων ημων ου περι των ημετερων δε μονον αλλα και περι ολου του κοσμου Primeiro, precisamos analisar o que significa a palavra grega ἱλασμος traduzida para “propiciação”. No VT, na tradução da LXX, essa palavra referia-se ao perdão usando um sacrifício de um animal no lugar do pecador. No entanto, era somente para Israel e não para todas as nações. Levitico 25:2 “Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando entrardes na terra, que vos dou, então, a terra guardará um sábado ao SENHOR.” Levitico 25:9 “Então, no mês sétimo, aos dez do mês, farás passar a trombeta vibrante; no Dia da Expiação, fareis passar a trombeta por toda a vossa terra.” Com respeito à palavra derivada, ἱλαστηριον, traduzida para “propiciatório”, o lugar onde era feito a propiciação, é usada como a tampa da arca onde ficavam os querubins entre os quais o Senhor falava com Moisés, referindo-se também para Cristo, demonstrava-se que era somente para os Filhos de Israel e não para todas as pessoas. Êxodo 25:22 “Ali, virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do Testemunho, falarei contigo acerca de tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel.” O apóstolo aos Hebreus desenvolve de uma forma mais clara quando escreve aplicando somente à Igreja: Hebreus 9:5-6 “e sobre ela, os querubins de glória, que, com a sua sombra, cobriam o propiciatório (ἱλαστηριον). Dessas coisas, todavia, não falaremos, agora, pormenorizadamente. Ora, depois de tudo isto assim preparado, continuamente entram no primeiro tabernáculo os sacerdotes, para realizar os serviços sagrados;” Hebreus 9:14-15 “muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! Por isso mesmo, ele é o Mediador da nova aliança, a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido chamados.” O apóstolo deixa bem claro que a promessa da remissão no contexto da propiciação e da expiação em Cristo Jesus que é o “Mediador da Nova Aliança” διαθηκης καινης μεσιτης e o propiciatório e propiciação (Rm 3.25) é somente para “aqueles que têm sido chamados” οι κεκλημενοι της αιωνιου κληρονομιας. O apóstolo usa o verbo grego καλεω / “chamar” no particípio perfeito passivo para demonstrar mais ainda a força do seu argumento da escolha soberana de Deus. O contexto da Epístola Antes de analisarmos o contexto imediato do texto falado, é necessário saber o contexto histórico no qual a epístola foi escrita para entendermos porque João fez algumas exortações, inclusive o verso 2 do capítulo 2. João estava escrevendo a sua epístola defendendo contra os falsos mestres gnósticos que afirmavam que a salvação vinha de um conhecimento oculto que era revelado somente aos poucos iniciados. Eles negavam a encarnação de Cristo, pois diziam que a matéria era má e a carne era pecaminosa. Por causa disso, os mestres com influência gnóstica que entraram na igreja pregavam que a salvação era somente aos poucos iniciados na igreja e não a todos os grupos em todos os lugares, sendo somente a um grupo fechado. John Stott, em seu comentário sobre a primeira epístola de João quando fala sobre o gnosticismo escreve: Uma terceira característica dos gnósticos, Cerinto sem dúvida incluído, parece que era a sua falta de amor. Pretendendo constituir uma aristocracia espiritual dos iluminados que, só eles tinham vindo a conhecer “as profundezas”. Desprezavam a carreira comum dos cristãos. João golpeia essa perigosa maneira de ver afirmando que não existem duas categorias de cristãos, os iluminados e os não, pois Deus é luz continuadamente se revelando a todos [os cristãos] (ênfase minha). (STOTT, 1985, P. 43) Simon Kistemaker, em seu comentário de primeira João, também demonstra essa perspectiva histórica quando fala do gnosticismo. Ele escreve: Em primeiro lugar, os gnósticos exaltavam a aquisição de conhecimento, pois, a seu ver, o conhecimento era o fim de todas as coisas. Por causa de seu conhecimento, tinham uma compreensão diferente das Escrituras, e, por causa dessa compreensão, separavam-se dos cristãos que não haviam sido iniciados. (KISTEMAKER, 2006, p. 285) Nesse contexto é que entendemos a advertência de João que não seria somente aos cristãos da igreja, mas a todos os demais que Deus chamasse como o autor aos Hebreus escreveu (Hb 9.15). Contexto Imediato (1Jo 2.1-2) 1 João 2:1-2 “Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.” τεκνια μου ταυτα γραφω υμιν ινα μη αμαρτητε και εαν τις αμαρτη παρακλητον εχομεν προς τον πατερα ιησουν χριστον δικαιον και αυτος ιλασμος εστιν περι των αμαρτιων ημων ου περι των ημετερων δε μονον αλλα και περι ολου του κοσμου Precisamos Analisar que o verso 2 vem do contexto e da lógica do verso primeiro, pois começa com a conjunção coordenada και demonstrando que os versos estão ligados e coordenados. João começa explicando do verso primeiro o seu objetivo que era trazer uma profunda sensibilidade ao pecado, pois os verbos ἁμαρτανω estão no aoristo. Essa sensibilidade deve nos trazer uma profunda consciência de um advogado perante o Pai que é Jesus Cristo, o Justo - παρακλητον εχομεν προς τον πατερα ιησουν χριστον δικαιον. Nenhum arminiano se aventuraria a dizer que esse “nós temos um advogado perante o Pai” incluiria incrédulos. Portanto, pelo contexto do verso primeiro, João continua seu argumento falando apenas da igreja para afirmar que esse Jesus é a propiciação não somente dos “iniciados” como os mestres gnósticos ensinavam, porém, ele é a propiciação da igreja, composta de gentios e judeus, como também todos os eleitos que ainda iriam crer em Cristo. Por isso, João escreve de uma forma semelhante e mais detalhada: 1 João 4:10 “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.” εν τουτω εστιν η αγαπη ουχ οτι ημεις ηγαπησαμεν τον θεον αλλ οτι αυτος ηγαπησεν ημας και απεστειλεν τον υιον αυτου ιλασμον περι των αμαρτιων ημων Dessa vez, João especifica somente a Igreja, pois ele afirma sempre os pronomes na primeira pessoa do plural, demonstrando que se referia somente a ela. Ele amou a sua igreja enviando seu Filho como propiciação com respeito aos “nossos pecados” - περι των αμαρτιων ημων. Conclusão Precisamos perceber que esses versos não são nenhuma ponte intransponível à doutrina da Expiação Limitada, demonstrada pelos apóstolos e reformadores. Ao contrário, eles se completam em demonstrar que a eleição não se limita a um grupo, nem aos “iniciados”, mas a todos a quem nosso Deus chamar (At 2.39). Por isso, meu objetivo foi exatamente demonstrar que As Escrituras demonstram que a expiação limitada é mais aceitável dentro de uma exegese e Hermenêutica que levem em conta todos os seus aspectos. Não tive a intenção de falar especificamente da expiação limitada, pois há muitos versos que demonstram de uma forma clara que Cristo morreu pelos seus eleitos que estão guardados no plano secreto e eterno de Deus. No entanto, os textos bíblicos demonstram que os reformadores estavam corretos em rejeitar a doutrina Arminiana diante das debilidades exegéticas e textuais. Portanto, precisamos pregar e ensinar sem nenhum medo que Deus é totalmente soberano, pois Deus prestará contas com todos aqueles que negligenciaram “todo o seu conselho”. _______________ REFERÊNCIAS SPURGEON, C. H. Livre-arbítrio - Um Escravo. São Paulo: PES, 1994. SPURGEON, C. H. Eleição. São Paulo: Editora Fiel, 1987 SPURGEON, C. H. A Perseverança na Santidade. São Paulo: PES, 1994. STOTT, John R. I, II e III João - Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1985. KISTEMAKER, Simon. Tiago e Epístolas de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. Fonte: Blog do autor |
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