sexta-feira, 1 de julho de 2016

Max Scheler sobre Nietzsche (ressentimento e cristianismo)



III. A moral cristã e o ressentimento

“Friedrich Nietzsche aponta a ideia do amor cristão como a florescência mais sutil do ressentimento."

Nesta ideia, o ressentimento armazenado em um povo oprimido e, ao mesmo tempo, rancoroso, justifica-se diante da consciência (o Deus deste povo, a medida em que é política e socialmente autônomo, é também o Deus da vingança).

Esta afirmação paradoxal de Nietzsche é – conquanto se aprecie retamente a gigantesca transformação que conduz da ideia antiga de amor para a ideia do
amor cristão; o que o próprio Nietzsche fez de modo muito parco e impreciso – muito menos paradoxal do que parece à primeira vista.
O esclarecimento de Friedrich Nietzsche é mesmo de um sentido tão profundo, tão digno de consideração da máxima gravidade como nunca foi dado outro nesta direção. Eu o acentuo tão mais intensamente, exatamente porque eu o tomo, em última análise, por completamente falso.

[…] o amor permanece entre os gregos uma existência factual pertencente à esfera sensível; e mesmo uma forma de ‘desejo’, de ‘carência’ etc., que não se encontra propriamente no Ser mais plenificado. A antiga subdivisão – tão digna de questão – da natureza humana em ‘razão’ e ‘sensibilidade’, formadores e formados, requer diretamente isto! 

Na esfera moral cristã, ao contrário, o amor é anteposto explicitamente, por seu valor, à esfera racional: ele, ‘que anima mais do que toda razão’ (Santo Agostinho). […] o amor cristão é uma intenção espiritual supranatural, que rompe toda a regularidade da força vital posta; como por exemplo, o ódio ao inimigo, a vingança e a promessa de desforra. 

Esta ruptura desloca o homem para um estado totalmente novo da vida, mas ainda não é aqui o essencial. O essencial consiste muito mais na direção do movimento, que o amor tem em consonância para com a moral e a concepção de mundo antigas. 

Todos os pensadores, poetas e moralistas antigos estão de acordo no que concerne ao fato de que o amor é uma aspiração, uma tendência do ‘baixo’ para o ‘alto’, do ‘menos plenificado’ ao ‘ mais plenificado’ […] Platão mesmo nos diz: ‘Se nós fôssemos deuses, nós não amaríamos’. Pois, no ser mais plenificado, não pode mais estar presente nenhuma ‘aspiração’ ou desejo’. O amor é aqui apenas um ‘Methodos’, um ‘caminho’. […] Este movimento ascensional vai até a divindade, que mesmo não ama mais, mas se apresenta como meta eternamente, calma e doadora de unidade a todo aquele frenesi múltiplo da vida […]

Confrontemos agora esta concepção com a concepção cristã. Nesta apresenta-se o que se pode chamar de inversão do movimento do amor. Aqui nos defrontamos exacerbadamente com o axioma grego do amor, para o qual o amor é um aspirar do mais baixo ao mais alto. Inversamente, o amor deve mostrar-se agora exatamente no fato de o nobre inclinar-se de onde está para baixo, onde encontra-se o plebeu; deste mesmo modo, o saudável inclina-se para o doente, o rico para o pobre, o messias para os cobradores de impostos e pecadores. 

Isto dá-se, contudo, sem que se perca o medo antigo de tornar a si mesmo plebeu, mas ganhando o mais elevado na convicção particularmente religiosa, na execução ativa desta ‘inclinação’, neste deixar-se escorregar para baixo, neste perder-se: o vir-a-ser igual a Deus. […] Deus não é mais nenhuma finalidade eterna e inerte para o amor das coisas – como uma estrela – que movimenta o mundo como o amado movimenta o amante. 

Sua essência mesma tornou-se amar e servir, e, pela primeira vez, a partir daí como consequência, criar, querer, efetuar. Em lugar do eterno ‘primeiro motor’ do mundo apresenta-se o ‘criador’, que criou-o ‘desde o amor’. O monstruoso para o homem antigo, o puro e simples paradoxo segundo seus axiomas, sucedeu-se na Galileia: Deus desceu espontaneamente aos homens e tornou-se um servo, morrendo na cruz a morte do pior dos servos! 

Com isso, esta frase se torna sem sentido: deve-se amar os bons e odiar os maus, amar o amigo e odiar o inimigo. Não existe mais nenhuma ideia de um ‘bem mais elevado’, que teria um conteúdo para além e independente do ato de amor mesmo, bem como de seu movimento. 

O próprio amor é a melhor de todas as coisa boas! Não uma coisa de valor, mas um ato de valor. […] segundo a representação cristã, o amor é um ato não sensível do espírito (nenhum estado meramente de sentimento como para os modernos), na mesma medida, não é nenhum aspirar e desejar, e ainda menos um carecer. […] Todos, os amigos e inimigos, os bons e maus, os nobres e os vulgares, são valorosos para o amor. 

Eu preciso incluir a mim mesmo como cúmplice em toda manifestação de uma maldade alheia, dizendo-me sempre: ‘Este homem mau seria mau, se tu o tivesses amado o bastante?’ Se aí a simpatia sensível, conjugada à sua raiz na potentíssima pulsão de nossa espécie, segundo a representação cristã, não é a origem, mas o refreamento parcial do amor, o não amar é já também ‘culpa’. Não somente a positiva ação incorreta, mas sim a culpa em toda culpa’.

Assim, a imagem modificou-se imensamente. Ela não é mais a imagem de um grupo de homens e coisas correndo para o alto e, com isso, sobrepujando-se em direção à divindade. Ela é agora a imagem de um grupo, onde cada membro olha de volta para o Deus mais distante, ajudando-o e servindo-o [Nota: perceba-se aqui a confluência entre esta visão e a ideia de René Girard, do Cristianismo como resolução do desejo e rivalidade miméticos]. Justamente através disso, ele se torna igual à divindade, que possui como essência um grande amor e servir e deixar-se cair.

[…] -de onde procede a volta desta direção do movimento? O ressentimento é realmente a força motivadora para isso?

Quanto mais reflito profundamente acerca desta pergunta, tanto mais claro me parece, que a raiz do amor cristão está completamente livre do ressentimento. Por outro lado, nenhuma outra ideia é tão fácil de passar, através do ressentimento existente, por essa tendência de fazer uma emoção, que é correspondente a este, tomar a sua roupagem; e isto frequentemente de modo tão exacerbado, que mesmo o olhar mais aguçado não pode mais definir se aí se apresenta o amor sincero, ou se apenas o ressentimento escolheu para si a expressão do amor.

Existem dois modos fundamentalmente diversos, através dos quais o forte pode se relacionar com o fraco, o rico com o pobre, bem como acima de tudo a vida plenificada com a vida ‘não plenificada’ – curvando-se para ela e auxiliando-a. Primeiramente, o modo que traz junto a si o sentimento poderoso da própria nascença, de sua altivez, da redenção interna e da invencível plenitude da existência e da vida mesmas, como ponto de partida interno e força motivadora para, a partir de tudo isto, alcançar a consciência clara de poder abster-se do ser e ter próprios. Neste ponto, o amor, o curvar-se diante dos pequenos e fracos é um superfluir espontâneo das forças, acompanhado de ventura e paz interna. 

Diante desta disposição natural de amor e sofrimento, todo ‘egoísmo’ específico, todo ater-se a si e a seus interesses, bem como o impulso próprio de ‘autoconservação’ já é um sinal de vida enfraquecida e obstruída. Vida é essencialmente desdobramento, desenvolvimento, crescimento em plenitude […] A vida nos impele para o o sacrifício – antes que nós saibamos por que, para que e por quem! 

Na imagem que Jesus faz da natureza e da vida, que transcorre e brilha às vezes fragmentariamente em alusões veladas através de seus discursos e alegorias, nós vemos de modo ainda bastante claro que ele percebeu este fato. Ele não diz ‘não vos preocupeis com isso, que vós deveis beber e comer’, porque a vida lhe é uma coisa indiferente, que pertence à sua conservação, mas porque ele vê também em todo ‘ocupar-se’ com o dia de amanhã, na inserção à própria plenitude do corpo, uma fraqueza vital. 

O pardal sem a provisão e a palha, os lírios que não tecem nem fiam, mas que Deus veste com mais exuberância do que Salomão, são para Jesus imagens da profunda impressão conjunta que tem da vida: toda a atenção voluntária à própria plenitude sensível, este preocupar-se e angustiar-se, obstaculiza mais do que promove a força criadora, que dirige toda vida involuntariamente trazendo o bem. ‘E quem de vós poderia prolongar sua vida, com todas as suas ocupações, mesmo que por apenas um certo espaço de tempo?’ (Lucas 12,25). 

Este tipo de indiferença frente aos meios exteriores da vida (alimentação, vestimenta etc.) não é em Jesus a indicação de nenhuma indiferença diante da vida e seus valores, mas de uma confiança secreta e de uma profundidade fundamental na força própria da vida mesma, de uma certeza interna frente aos acasos mecânicos nos quais ela se movimenta. Uma feliz, leve e audaz indiferença frente às circunstâncias da vida, indiferença esta extraída da profundeza da própria vida. Ela é aqui a fonte, a partir da qual aquelas palavras fluem! […]

Amor e sacrifícios deste tipo diante dos fracos, doentes, pequenos, etc., nascem então do abrigo interno e de uma plenitude vital própria. […]

[…] Não se dirige amor e vontade de sacrifício, porque a vida é doente, pobre, pequena e feia, com o intuito de manter-se passivamente nestas manifestações; mas porque os valores positivos da vida mesmo já (e primeiramente, naturalmente de modo reto, os valores espiritualmente pessoais desta individualidade) não são de modo algum independentes destas propriedades, se encontrando ainda em uma profundidade maior do que elas. […] Não são a doença e a pobreza que são amadas nos pobres e doentes, mas o que está por detrás disso – e só por isto lhe é dado ‘auxílio’. […]

O mesmo [aparência de ressentimento] acontece com as exigências: ‘Amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos ofendem. Ao que te bate na face direita, oferecei-lhe também a outra face; e ao que te toma o manto, não lhe negareis também a túnica’ (Lucas 6,27-29). Elas não exigem nenhuma passividade, requerida somente pelo sentimento de impotência no vingar-se e ‘justificada’ por ele (como Nietzsche tão equivocadamente pensa); nem tampouco procuram envergonhar os opositores guardando uma sede de vingança secreta. Elas não são expressão de um autoflagelo secreto que se satisfaz em uma atitude paradoxal. 

Elas apenas impingem a mais extraordinária atividade contra o impulso vital natural, que convida às ações contrapostas. E esta imposição se dá a partir do espírito mais interno e individual do evangelho, que rejeita este impulso para fazer com que o tipo próprio da ação e da atitude seja de algum modo independente da atitude do outro; que rejeita o fato de o agente se deixe arrastar para baixo pela atitude do outro, até o nível mais profundo do mesmo, e que a direção de seu agir se determine enquanto mera reação ao estranho. 

A ação deve abrir-se ao crescimento a partir da pessoa, ‘como o fruto a partir da árvore’. ‘O homem bom traz para fora o bem desde a boa provisão de seu coração, enquanto o homem mau traz o mau a partir de sua má provisão’. ‘Pois de quem o coração é pleno, a boca passa em silêncio’ (Mateus 12,34 e 35). 

Não é portanto uma reação perversa à reação normal que é exigida, no sentido de um ‘porque ele te bate em uma face, por isso estenda a outra’, um mero agir relativo em geral é rejeitado, bem como todo deixar-se entrar para o seio dos critérios valorativos e tipos de ação comuns e medianos. […]

Não é suficiente apenas rejeitar uma hipótese tão profundamente significativa quanto aquela de Fr. Nietzsche acerca da origem da moral cristã – se a reconhecermos como falsa – mas é preciso também mostrar como Nietzsche chega a este erro, como pode tomar para si um grau tão grande de aparência.

A razão disto já foi apresentada; por um lado, no desconhecimento da essência da moral cristã, e especialmente da ideia de amor cristão. Este desconhecimento, em ligação com um critério valorativo em si falso, junto ao qual Nietzsche a coloca, faz com que ele cometa não um erro histórico ou religioso, mas um erro filosófico. Aliado a isso, nós temos sucessivas deformações da moral cristã, feitas através da inserção de valores de um solo histórico completamente diverso, que se fizeram determinantes em seu desenvolvimento posterior”.

[SCHELER, Max. Da reviravolta dos valores: Ensaios e artigos. Petrópolis: 1994, Vozes, pp. 90-113]

Phonte: Logos

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