Quem entrou no verbete sobre a francesa Simone de Beauvoir na Wikipédia no domingo passado leu que ela era escritora e publicou romances e monografias sobre filosofia, sociedade, política e uma autobiografia, mas que "não entendia nada de biologia".
Este último trecho não constava nesta descrição até o dia anterior e foi incluído após uma passagem de seu livro O Segundo Sexo, de 1949, aparecer em uma questão do Exame Nacional de Ensino Médio, o Enem, realizado no domingo.
O fato de palavras de Beauvoir, expoente do feminismo, estarem em uma questão do Enem gerou muita discussão nas redes sociais brasileiras. Mas as reações negativas não ficaram restritas a estes sites.
Nos dias seguintes à prova, o verbete sobre Beauvoir na Wikipédia não só teve um salto no número de visitas, passando das 250 que tinha em média por dia para 35 mil na última segunda-feira, como sofreu diversas alterações. Foram 46 edições em quatro dias. Em todo o ano de 2015, o texto havia sido alterado apenas dez vezes antes do Enem.
O trecho que fazia piada com o suposto desconhecimento de Beauvoir sobre biologia foi só um dos primeiros. Logo, vieram outros – e a página teve suas edições restringidas por "vandalismo excessivo", de acordo com a Wikipédia.
Pedofilia e nazismo
Um usuário mudou o verbete para dizer que ela havia escrito um "livro de estupro". Outro informou que Beauvoir era uma "antifeminista". Um terceiro disse ainda que ela era "muito conhecida por seu comodismo e pela luta na justiça por uma lei que proibia o trabalho das mulheres fora de casa".
Também foram incluídas sugestões e mesmo afirmações de que Beauvoir, no passado, teria colaborado com a ocupação nazista da França na Segunda Guerra e de que ela teria feito campanha pela "legalização da pedofilia".
Foram tantas as alterações que o usuário da Wikipédia responsável por resguardar a qualidade do verbete restringiu as modificações.
Na Wikipédia, qualquer pessoa pode fazer uma edição em um artigo, mas, em alguns casos específicos, podem ser impostas restrições, como foi o caso do artigo sobre de Beauvoir.
No dia seguinte ao Enem, por causa de "vandalismo excessivo", o verbete passou a só poder ser alterado por "usuários autoconfirmados" - pessoas com conta no site há pelo menos quatro dias e que já tenham feito no mínimo dez edições.
Lucas Teles, administrador da Wikipédia em português e editor voluntário desde 2007, explica que é considerado vandalismo qualquer alteração que tente reduzir a qualidade de um artigo - e a proteção do artigo é aplicada para que só pessoas minimamente familiarizadas com as regras de edição do site possam alterar seu conteúdo.
"A informação incluída precisa ter uma fonte respeitável. Não pode ser algo tirado de um blog, rede social ou uma página de menor visibilidade, por exemplo. Mesmo assim, essa fonte não pode ser parcial. É preciso ter os dois lados de um ponto de vista", afirma Teles, que esclarece que o ocorrido com o verbete de Beauvoir não é "comum".
"É normal que, após um assunto ou figura pública ficar em evidência, muitas pessoas acessem seu verbete e o complementem ou tirem um trecho do qual discordam. Mas o que aconteceu no verbete de Simone – incluir informações consideradas negativas para influenciar a visão que as pessoas têm dela – não é frequente."
Controvérsias
As edições que tachavam Beauvoir de nazista e pedófila estão relacionadas a controvérsias de sua biografia pessoal. Entre 1943 e 1944, enquanto a França estava ocupada por nazistas, ela de fato trabalhou como diretora de sonoplastia da emissora estatal Rádio Vichy.
E, apesar de ter mantido um longo relacionamento com o filósofo e ganhador do prêmio Nobel Jean-Paul Sartre, é sabido que Beauvoir se relacionou com diversas mulheres, algumas das quais eram suas alunas.
Uma estudante, Bianca Lamblin, chegou a escrever um livro no qual dizia de ter sido vítima de abuso por parte de Beauvoir. E, em 1943, ela foi suspensa de suas atividades como professora, porque outra aluna, Natalie Sorokine, a acusou de ter tentado seduzi-la quando a estudante tinha 17 anos.
Em 1977, Beauvoir ainda assinou, junto com outro intelectuais de seu tempo, como os filósofos Michael Focault e o próprio Sartre, uma petição ao Parlamento francês pela abolição da idade de consentimento – na prática, a maioridade sexual de um cidadão, que era de 15 anos na França naquela época – e em prol da descriminalização do sexo consensual com pessoas abaixo desta idade limite.
Mas especialistas ouvidas pela BBC Brasil discordam que estes fatos justifiquem as alterações feitas no verbete da Wikipédia.
'Desonestidade'
Para a filósofa Djamila Ribeiro, pesquisadora da vida e obra da escritora francesa e integrante a Simone de Beauvoir Society, organização fundada em 1981 que organiza conferências internacionais sobre Beauvoir, é "desonesto" classificá-la como defensora da pedofilia e do nazismo.
"Não há nada comprovado. Ela assumiu posições políticas muito fortes contra o nazismo, por exemplo. Esse assunto nem entra nas discussões acadêmicas travadas sobre Simone", afirma Ribeiro.
"Também é um absurdo dizer que ela fazia apologia à pedofilia. Para isso, seria necessário comprovar que ela abusou de crianças, mas só podemos dizer que ela assinou um documento. Pessoalmente, discordo da posição dela, mas isso é diferente de dizer que ela era pedófila."
Ribeiro destaca que outros intelectuais também assinaram a mesma petição e "ninguém os chama de pedófilos".
"Muitos filósofos consideram que o pensamento racialista de Hegel serviu de base para o nazismo. Kant era preconceituoso. Mas eles não são acusados de 'nazista' ou 'racista'. São considerados apenas grandes filósofos", afirma a especialista.
"Para mim, isso é obra de pessoas que estão incomodadas com o fato das ideias dela estarem no Enem e tentam demonizá-la ou desqualificá-la por meio de sua vida pessoal. Temos que focar na sua obra e o que trouxe de significativo em vez de tentar diminuir uma mulher que estava à frente de seu tempo."
Contexto
Clarisse Fukelman, professora do departamento de Comunicação da PUC-Rio e que foi curadora da mostra sobre o centenário de Sartre, em 2005, defende ser "extremamente inconsequente usar termos como pedofilia e nazismo sem que isso venha junto com fatos e reflexões".
"Não dá para discutir isso sem ver o contexto em que tudo ocorreu. Era uma época em que as pessoas se casavam e tinham filhos aos 15 anos, por exemplo. E, no Brasil, houve escritores e jornalistas que escreveram sobre Getúlio Vargas quando ele controlava a imprensa e nem por isso podemos dizer que eles eram fascistas", afirma Fukelman.
"A internet é um fórum a princípio democrático, mas que também expõe pensamentos apressados em que o preconceito se revela sem máscaras."
Para a especialista, o "vandalismo" ocorrido na Wikipédia deriva da resistência às ideias de Beauvoir contra a dominação masculina e os direitos da mulher.
"Ela desmonta o determinismo biológico nos papéis sociais da mulher e do homem, e isso incomoda muita gente ainda hoje, porque vai contra a tradição de uma sociedade como a brasileira, que é preconceituosa e machista", diz Fukelman.
"O trabalho de Beauvoir é muito mais importante do que buscar elementos externos para desqualificar uma figura que teve contribuições filosóficas, literárias e políticas notáveis."
Furor
Atualmente, o artigo da Wikipédia sobre Beauvoir não exibe nenhuma das alterações que foram consideradas "vandalismo". Todas foram retiradas, e o texto, revertido ao seu estado pré-Enem. E assim como nas versões do verbete em inglês em espanhol, não há mais qualquer menção direta a pedofilia ou nazismo.
Permanece somente o trecho que menciona as acusações de abuso feitas por sua ex-alunas, que têm como fontes livros ou artigos de jornais de renome já publicados sobre o tema.
A restrição às edições teve seu efeito. As alterações feitas desde então se resumem basicamente a ajustes pontuais de grafia ou gramaticais. Segundo Teles, administrador da Wikipédia, o verbete sobre Beauvoir deve ficar protegido por ao menos uma semana.
"É de praxe fazer isso até que o furor acabe, o assunto saia da mídia e as pessoas percam o interesse em danificar o artigo. Mas, se isso persistir, o prazo desta restrição pode ser estendido."
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