A série “Black Mirror”, da Netflix, é uma das mais impactantes que já vi. Coloca um espelho diante do telespectador, que mostra lá dentro de sua alma, seu lado sombrio, sua “natureza humana”.
E se tem um tema que os conservadores prezam e parecem estar cobertos de razão, este é o abismo que separa o progresso tecnológico da evolução moral. Não andam pari passu, e por mais que os liberais demonstrem um otimismo com nossa espécie, o fato persiste: nossa natureza humana é relativamente imutável ao longo dos séculos.
Não quer dizer que o mundo hoje seja o mesmo de sempre, e que a humanidade nada aprenda com o tempo. Mas aprendemos com a História que pouco se aprende com a História. E se tragédias gregas continuam atuais, se Shakespeare continua atual, então é porque toda essa conquista tecnológica não foi capaz de alterar o animal homem em sua essência.
Há vários relatos mais otimistas, como os de Steven Pinker, os de Matt Ridley, os de Benjamin Friedman, os de Deirdre McCloskey e tantos outros, que mostram como a humanidade melhorou com o tempo, o capitalismo, o advento da burguesia etc. Tudo isso é verdade em certo sentido, mas o liberal que endossa a tese de um progresso moral inequívoco, inexorável e inevitável, como se o Iluminismo fosse uma linha reta rumo ao “paraíso”, padece de lamentável ingenuidade infantil.
É nessa hora que o casamento com conservadores mais pessimistas (ou realistas?) pode ser saudável. Um Roger Scruton defendendo as vantagens do pessimismo, um John Gray espetando a besta selvagem que nos habita, um Joseph Conrad mostrando “o horror, o horror” que pode tomar conta de nós no menor sinal de suspensão da civilização, que teria pilares mais frágeis do que gostaríamos de crer.
E é nesse contexto que aprecio “Black Mirror”, apesar (ou justamente por conta) de seus episódios tão angustiantes. Eles retratam algo que está dentro de nós e preferimos ignorar, para tornar a vida mais suportável. E a combinação desse avanço tecnológico todo com o macaco que existe em nós pode ser explosiva, mesmo fatal, como quase foi na época da tensão nuclear (que serviu como pano de fundo para vários livros e distopias, como Um Cântico para Leibowitz de Walter Miller, que estou lendo).
Esse foi o tema da coluna de João Pereira Coutinho na Folha hoje. Eis alguns trechos:
O líder, em rigor, já não lidera; ele é liderado pelas massas. E, se assim é, haverá ainda lugar para conceitos arcaicos como “dignidade”, “independência intelectual” ou “coragem” para ser impopular?
“Black Mirror” é feito dessas perguntas. E de outras, que já podemos intuir em 2017. Devemos ter direito ao esquecimento e à privacidade das nossas memórias? Ou será preferível ter acesso permanente ao passado –acesso visual, detalhado, partilhável, como se a existência fosse um filme facilmente rebobinável?
E a morte? Sim, nenhuma civilização temeu tanto a morte como a nossa. Mas será desejável que os nossos mortos possam ser “ressuscitados” pela tecnologia em simulacros de voz e corpo que nos poupam as dores do luto? E se um dia a forma como somos avaliados no Facebook transbordar para a vida cotidiana? Até onde estaremos dispostos a ir para receber mais “likes” e subir na hierarquia social?
Todas essas demandas convidam a uma reflexão inversa. Um político que é escravo da opinião popular pode facilmente transformar-se em simples marionete dos piores instintos da maioria. O esquecimento e a privacidade são a última barreira que nos protege da destruição e da autodestruição. O luto não é apenas feito de dor e sofrimento; é uma pausa necessária para reencontrar sentido e reconciliação depois do naufrágio.
E a obrigação de sermos permanentemente alegres e felizes para subir na hierarquia dos “likes” é uma forma de tortura. Não por excluir a infelicidade (isso é impossível); mas apenas a expressão pública dessa infelicidade. Como acontece em regimes totalitários.
A maior proeza de “Black Mirror” está na forma como mostra duas realidades contrastantes, que os fanáticos da tecnologia são incapazes de vislumbrar: de um lado, a fluidez amoral da criação tecnológica; do outro, a permanência da natureza humana. Podemos imaginar um mundo de mil possibilidades técnicas; mas o “software” de que somos feitos –sentimentos primitivos como o medo, a inveja, o ciúme, a vergonha– não se altera com uma simples mudança de cenário. Macacos com melhores smartphones nunca deixarão de ser macacos. Apenas se tornam mais patéticos ou mais perigosos.
Meu lado liberal otimista aponta para um futuro melhor, em que toda essa tecnologia servirá para tornar a vida do homem na Terra mais confortável, melhor. Meu lado conservador pessimista alerta para os perigos de tanta tecnologia nas mãos de um ser bestial e sem tanta ética, que poderá usar esse aparato todo para tentar driblar a própria natureza humana, sempre com efeitos nefastos. Um equilíbrio entre ambos se faz necessário, em minha humilde opinião.
Rodrigo Constantino
Não quer dizer que o mundo hoje seja o mesmo de sempre, e que a humanidade nada aprenda com o tempo. Mas aprendemos com a História que pouco se aprende com a História. E se tragédias gregas continuam atuais, se Shakespeare continua atual, então é porque toda essa conquista tecnológica não foi capaz de alterar o animal homem em sua essência.
Há vários relatos mais otimistas, como os de Steven Pinker, os de Matt Ridley, os de Benjamin Friedman, os de Deirdre McCloskey e tantos outros, que mostram como a humanidade melhorou com o tempo, o capitalismo, o advento da burguesia etc. Tudo isso é verdade em certo sentido, mas o liberal que endossa a tese de um progresso moral inequívoco, inexorável e inevitável, como se o Iluminismo fosse uma linha reta rumo ao “paraíso”, padece de lamentável ingenuidade infantil.
É nessa hora que o casamento com conservadores mais pessimistas (ou realistas?) pode ser saudável. Um Roger Scruton defendendo as vantagens do pessimismo, um John Gray espetando a besta selvagem que nos habita, um Joseph Conrad mostrando “o horror, o horror” que pode tomar conta de nós no menor sinal de suspensão da civilização, que teria pilares mais frágeis do que gostaríamos de crer.
E é nesse contexto que aprecio “Black Mirror”, apesar (ou justamente por conta) de seus episódios tão angustiantes. Eles retratam algo que está dentro de nós e preferimos ignorar, para tornar a vida mais suportável. E a combinação desse avanço tecnológico todo com o macaco que existe em nós pode ser explosiva, mesmo fatal, como quase foi na época da tensão nuclear (que serviu como pano de fundo para vários livros e distopias, como Um Cântico para Leibowitz de Walter Miller, que estou lendo).
Esse foi o tema da coluna de João Pereira Coutinho na Folha hoje. Eis alguns trechos:
O líder, em rigor, já não lidera; ele é liderado pelas massas. E, se assim é, haverá ainda lugar para conceitos arcaicos como “dignidade”, “independência intelectual” ou “coragem” para ser impopular?
“Black Mirror” é feito dessas perguntas. E de outras, que já podemos intuir em 2017. Devemos ter direito ao esquecimento e à privacidade das nossas memórias? Ou será preferível ter acesso permanente ao passado –acesso visual, detalhado, partilhável, como se a existência fosse um filme facilmente rebobinável?
E a morte? Sim, nenhuma civilização temeu tanto a morte como a nossa. Mas será desejável que os nossos mortos possam ser “ressuscitados” pela tecnologia em simulacros de voz e corpo que nos poupam as dores do luto? E se um dia a forma como somos avaliados no Facebook transbordar para a vida cotidiana? Até onde estaremos dispostos a ir para receber mais “likes” e subir na hierarquia social?
Todas essas demandas convidam a uma reflexão inversa. Um político que é escravo da opinião popular pode facilmente transformar-se em simples marionete dos piores instintos da maioria. O esquecimento e a privacidade são a última barreira que nos protege da destruição e da autodestruição. O luto não é apenas feito de dor e sofrimento; é uma pausa necessária para reencontrar sentido e reconciliação depois do naufrágio.
E a obrigação de sermos permanentemente alegres e felizes para subir na hierarquia dos “likes” é uma forma de tortura. Não por excluir a infelicidade (isso é impossível); mas apenas a expressão pública dessa infelicidade. Como acontece em regimes totalitários.
A maior proeza de “Black Mirror” está na forma como mostra duas realidades contrastantes, que os fanáticos da tecnologia são incapazes de vislumbrar: de um lado, a fluidez amoral da criação tecnológica; do outro, a permanência da natureza humana. Podemos imaginar um mundo de mil possibilidades técnicas; mas o “software” de que somos feitos –sentimentos primitivos como o medo, a inveja, o ciúme, a vergonha– não se altera com uma simples mudança de cenário. Macacos com melhores smartphones nunca deixarão de ser macacos. Apenas se tornam mais patéticos ou mais perigosos.
Meu lado liberal otimista aponta para um futuro melhor, em que toda essa tecnologia servirá para tornar a vida do homem na Terra mais confortável, melhor. Meu lado conservador pessimista alerta para os perigos de tanta tecnologia nas mãos de um ser bestial e sem tanta ética, que poderá usar esse aparato todo para tentar driblar a própria natureza humana, sempre com efeitos nefastos. Um equilíbrio entre ambos se faz necessário, em minha humilde opinião.
Rodrigo Constantino
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