Por Maria Helena Garrido Saddi
E partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e Sidom. E eis que uma mulher cananéia , que saíra daquelas cercanias, clamou dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemoninhada.
Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: Despede-a, que vem gritando atrás de nós. E ele, respondendo, disse: Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Então chegou ela e adorou-o, dizendo: Senhor, socorre-me.
Ele, porém, respondendo, disse: Não é bom pegar o pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos. E ela disse: Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus senhores. Então, respondeu Jesus e disse-lhe: Ó mulher, grande é a tua fé! Seja isso feito para contigo como tu desejas. E, desde aquela hora, a sua filha ficou sã
(O Evangelho Segundo Mateus, 15.21-28. In Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. S.Paulo: Scripturae, 2004).
Estamos diante de um texto mais denso de significado, sem dúvida, do que qualquer uma
das estórias de Tutameia, de Guimarães Rosa. No entanto, a referida obra do autor mineiro apresenta, excepcionalmente, quatro prefácios, sugerindo as leituras e releituras demandadas pelos contos, para uma compreensão à altura de suas ricas possibilidades de significar.
Seria, pois, sensato pretender-se o requerido entendimento do texto de Mateus, supratranscrito, assim como de outros registros bíblicos, com semelhante intensidade dialética, por meio de uma abordagem descontextualizada, rasamente literal?
Vejamos, por agora, o relato de Mateus.
Numa leitura imediatista, restrita ao texto em questão, como se poderia interpretar o comportamento de Jesus? A bem da verdade, ou de uma aparente verdade, poder-se-ia interpretá-lo como um lance de contradição. Afinal, Jesus, figura emblemática da misericórdia divina, pareceu indisposto, no início do citado episódio, a usar de misericórdia com certa mãe aflita que lhe implorava socorro. E aí, o que fazer?
Com sabedoria, isso: partir para uma leitura proficiente, expondo o texto à luz do contexto bíblico a que ele pertence. Foi o que fizemos. E se revelou a nós o sentido de alta coerência do comportamento de Cristo, também naquela situação.
Consideremos: um dos pontos de grande relevância dos quais o Mestre Galileu vinha tratando em suas pregações era exatamente o comportamento impiedoso, de mera religiosidade legal, característico dos líderes religiosos da época. São provas disso admoestações severas, como esta: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23.23).
Então, o chocante comportamento do Messias, indo ostensivamente de encontro ao seu ensino, não parece forte demais para ser gratuito?
Ora, é preciso ter-se em mente que o diálogo de Jesus com a mulher cananeia aconteceu num momento de grande agitação ideológica do ministério dele. Enfrentando a oposição dos doutores do judaísmo, guias religiosos de Israel, Jesus censurava-lhes a incorreta interpretação de pontos básicos das Escrituras.
Empenhava-se o Mestre, particularmente, em esclarecê-los a respeito de certo entendimento equivocado que tinham e que sustentava a soberba nacional deles. É que, por serem descendentes de Abraão, o patriarca hebreu fortemente concertado com Deus, esses judeus julgavam-se beneficiários exclusivos das considerações divinas, desprezando os não-judeus, tidos em seu conceito metafórico como cães, i.e., como seres inferiores.
Na verdade, confundiam “descendência” (linhagem genética) com “filiação”, tomada na acepção de compartilhamento da natureza espiritual. Vejam-se, a seguir, alguns lances desse embate, na transcrição de versículos do capítulo oito do Evangelho Segundo João:
“(v.33) Responderam-lhe [os judeus a Jesus]: Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém; como dizes tu: sereis livres?
(v.37) Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me, porque minha palavra não entra em vós.
(v.39, 40) Responderam e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão. Mas agora procurais matar-me a mim, homem que vos tem dito a verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não procedeu assim.
(v.43) Por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra”.
No propósito de corrigir o discutido equívoco, de gravíssimas consequências, Jesus usou palavras fortes, censuras enfáticas à hipocrisia, como a que vimos acima, e ilustrações argumentativas, tanto verbais como fatuais.
Por exemplo, quando certo intérprete da Lei, com o intuito de pô-lo à prova, perguntou-lhe: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10.29), o divino Mestre aproveitou essa oportunidade para insistir no ataque ao equivocado preconceito. Vamos traduzi-lo com a seguinte formulação: “judeus, filhos de Deus porque descendentes de Abraão versus não-judeus ou bastardos espirituais, cães”.
O que fez Jesus? Para responder ao inquiridor, compôs uma parábola. Nela, mostrou o comportamento impiedoso de um sacerdote e de um levita judeus. Estes, encontrando um homem ferido, vítima de salteadores, negaram-lhe socorro.
A atitude desumana desses judeus, de destacadas referências religiosas (sacerdote e levita), foi francamente oposta à de um estrangeiro (um samaritano). Passando, também, por aquele caminho, o dito estrangeiro moveu-se de íntima compaixão pelo necessitado e o acudiu (Lc 10.30-37).
Assim, pois, do paralelo contrastivo “judeu x estrangeiro”, Jesus fez um argumento verbal, propiciado pela inquirição do intérprete da Lei.
Ilustrativamente, Jesus mostrou que o estrangeiro da parábola tivera uma atitude compatível com a de um filho de Deus, ao contrário dos dois judeus, que se revelaram meros descendentes físicos de Abraão. A propósito disso, o apóstolo Paulo escreveria mais tarde: “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9.6).
Nessa mesma linha didática, mas já passando do verbal para o fatual, ou seja, passando da palavra para o fato ou ação, Jesus fez questão de destacar, no episódio da cura de dez leprosos, o fato de que apenas um deles, exatamente o não-judeu, tivesse agido corretamente. Observou: “Não foram dez os limpos? E onde estão os nove? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?” (Lc 17.18).
Pois bem, na condição de o Profeta de Deus, por excelência, Verbo divino feito carne, portanto, de profundo sabedor de tudo e de todos (“Agora vemos que sabes todas as coisas” – Jo 16.30), não conheceria Jesus a grandeza da mulher cananeia? Não saberia ele que ela estava apta a oferecer-lhe elementos para a construção de um argumento vivo, de um argumento-fato, em favor de seu extraordinário propósito doutrinário?
Sem dúvida! Servindo-se, então, do oportuno daquele encontro, o Mestre lançou mão de um argumento ad hominem: ele SIMULOU, no trato com aquela mulher, um comportamento de frieza xenófoba, próprio dos seus oponentes, para demonstrar o absurdo de tal comportamento e do erro conceitual que o sustentava.
Com efeito, a simulação dialética de Jesus, nesse episódio, abriu espaço a que a mulher cananeia exteriorizasse toda a sua grandiosa capacidade para, crendo nele, ser uma filha de Deus, ao invés de ser um cachorrinho.
Daí, a posterior afirmação do Evangelista: “Veio [o Verbo divino] para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome” (Jo 1.11-12). Ela creu e confessou publicamente a sua fé (Rm 10.9-10).
Importa observar que Jesus só levou a simulação retórica, ou dramatização didática, até ao ponto em que a mulher terminou a revelação de seus enormes valores humanos, traduzidos em palavras e gestos de inteligência e sabedoria. Admiravelmente, ela diagnosticara o mal que acometia sua filha (possessão demoníaca), procurara a Pessoa certa para resolver seu problema (Jesus Cristo) e se posicionara com inarredável autodeterminação na busca de seu objetivo: a cura da menina.
Concluída a exposição do perfil dela, e concluída a consecução do propósito de Cristo, ele exclamou: “Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres. E, desde aquele momento, sua filha ficou sã” (Mt 15.58).
Entenda-se: Jesus, o judeu divino, assumiu, postiça e caricatamente, o comportamento de judeus (des)humanos, para execrar com maior veemência o tal comportamento.
Há certa semelhança entre esse expediente retórico empregado por Jesus e aquele que Montesquieu, escritor filosófico francês (séc. XVIII), empregou em sua obra “L’esprit des lois”, mais exatamente no texto “De l’esclavage des nègres” (Apud AVISSEAU, P. Littérature Française. Paris: Les éditions de l’école, 1965).
O que fez Montesquieu? Para combater a escravização dos negros africanos, o barão de la Brède et de Montesquieu assumiu uma postura sutilmente irônica, construindo vários argumentos “a favor” do regime escravista.
Se ele não tivesse introduzido o seu discurso, declarando sarcasticamente: “Si j’avais à soutenir le droit que nous avons de rendre les nègres esclaves, voici ce que je dirais” [Traduzimos: “Se eu tivesse que sustentar o direito que nós temos de escravizar os negros, eis o que eu diria”] –, e se não conhecêssemos mais a seu respeito, além do que transmite o citado texto, o que aconteceria?
Seríamos induzidos a pensar que Montesquieu tivesse sido um terrível partidário do escravismo. Ou seja, atribuir-lhe-íamos um posicionamento ideológico exatamente contrário ao que ele tinha.
Do mesmo modo, se a nossa informação sobre Jesus se limitasse ao citado relato de Mateus, teríamos razão para admitirmos que fosse de Jesus o arrogante e parcialmente impiedoso comportamento ali adotado por ele.
A verdade, porém, é que não precisamos de um “prefácio de Montesquieu”, para sermos alertados sobre a estratégia retórica do Messias nessa sua argumentação magistral. E por que não?
Porque temos toda a Bíblia para testemunhar a respeito dele (Jo 5.39)! E ainda: temos o conhecimento de que a leitura proficiente de um texto de alto teor ideológico não se limita à recepção do que nele se diz explicitamente, mas empenha-se na percepção de seus implícitos. Assim, pois, sobejam-nos recursos para o correto entendimento da narrativa de Mateus.
Não fosse a limitação espacial imposta à publicação jornalística, procederíamos a uma análise hermenêutica mais acurada do texto sob enfoque, cuja chave exegética é o pronunciamento de Jesus: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (op. cit., v.24). Finalizaremos o nosso artigo com uma breve consideração sobre tal ponto.
Por que afirmamos ser o referido pronunciamento a chave que abre o entendimento do texto? Porque a estranheza de que se reveste é ostensiva demais, para que não se perceba que ele está chamando a atenção sobre si; que está conclamando ouvidos dispostos a ouvirem o que ele, realmente, tem a dizer. Se não, vejamos.
O conhecimento de que a relação de Jesus Cristo com Israel seria de primazia e não de exclusividade é fato por demais estabelecido. Isaías profetizara, com setecentos anos, aproximadamente, de antecedência: “Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra” (Is 49.6).
Assim, pois, predisseram-no os profetas messiânicos, apregoaram-no os discípulos de Jesus, obviamente instruídos por ele. A respeito disso, aliás, foram-lhes transmitidos alguns dos últimos ensinos do Mestre:
“Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse e, ao terceiro dia, ressuscitasse dos mortos. E em seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém. E destas coisas sois vós testemunhas” (Lc 46-48).
Em suma, as palavras que Jesus Cristo dissera, colocando os judeus como exclusivos destinatários dos benefícios do Messias, ele as extraíra do entendimento equivocado deles e as usara, para combater-lhes a insensatez. De fato, tais palavras não traduziam a perfeita consciência que ele tinha a respeito de seu compromisso com a humanidade.
Exatamente por esse motivo é que Jesus não se negara a dar o pão da cura, da libertação e da salvação a milhares de não-judeus, sem, jamais, ter-lhes dificultado a aproximação, mediante a absurda (in)justificativa do “Não é bom pegar o pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos”. A propósito, atente-se para as seguintes colocações:
Acaso eram “ovelhas perdidas da casa de Israel” o centurião romano, a cuja casa Jesus se dispôs a ir para curar-lhe o servo? (Mt 8.7). E o possesso de Gadara (uma das dez cidades gregas confederadas ao sul do mar da Galileia), em cuja direção Jesus se encaminhou, para libertá-lo de uma legião de demônios? (Lc 8.26-39). E todos os doentes da Síria, “acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e paralíticos”, os quais ele curou? (Mt 4.24).
Decididamente, Jesus não tinha escassez de pão, e não o negaria a qualquer que lho pedisse, ou peça. Não poderia negar-se a si mesmo e à sua missão. Ele é o pão de Deus que desce do céu e dá vida ao mundo (Jo 6.33).
Soli Deo Gloria!
(Maria Helena Garrido Saddi, professora doutora em Letras/UFG, membro da Catedral Evangélica Hebrom, e-mail: - hgsaddi@gmail.com)
Estamos diante de um texto mais denso de significado, sem dúvida, do que qualquer uma
das estórias de Tutameia, de Guimarães Rosa. No entanto, a referida obra do autor mineiro apresenta, excepcionalmente, quatro prefácios, sugerindo as leituras e releituras demandadas pelos contos, para uma compreensão à altura de suas ricas possibilidades de significar.
Seria, pois, sensato pretender-se o requerido entendimento do texto de Mateus, supratranscrito, assim como de outros registros bíblicos, com semelhante intensidade dialética, por meio de uma abordagem descontextualizada, rasamente literal?
Vejamos, por agora, o relato de Mateus.
Numa leitura imediatista, restrita ao texto em questão, como se poderia interpretar o comportamento de Jesus? A bem da verdade, ou de uma aparente verdade, poder-se-ia interpretá-lo como um lance de contradição. Afinal, Jesus, figura emblemática da misericórdia divina, pareceu indisposto, no início do citado episódio, a usar de misericórdia com certa mãe aflita que lhe implorava socorro. E aí, o que fazer?
Com sabedoria, isso: partir para uma leitura proficiente, expondo o texto à luz do contexto bíblico a que ele pertence. Foi o que fizemos. E se revelou a nós o sentido de alta coerência do comportamento de Cristo, também naquela situação.
Consideremos: um dos pontos de grande relevância dos quais o Mestre Galileu vinha tratando em suas pregações era exatamente o comportamento impiedoso, de mera religiosidade legal, característico dos líderes religiosos da época. São provas disso admoestações severas, como esta: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23.23).
Então, o chocante comportamento do Messias, indo ostensivamente de encontro ao seu ensino, não parece forte demais para ser gratuito?
Ora, é preciso ter-se em mente que o diálogo de Jesus com a mulher cananeia aconteceu num momento de grande agitação ideológica do ministério dele. Enfrentando a oposição dos doutores do judaísmo, guias religiosos de Israel, Jesus censurava-lhes a incorreta interpretação de pontos básicos das Escrituras.
Empenhava-se o Mestre, particularmente, em esclarecê-los a respeito de certo entendimento equivocado que tinham e que sustentava a soberba nacional deles. É que, por serem descendentes de Abraão, o patriarca hebreu fortemente concertado com Deus, esses judeus julgavam-se beneficiários exclusivos das considerações divinas, desprezando os não-judeus, tidos em seu conceito metafórico como cães, i.e., como seres inferiores.
Na verdade, confundiam “descendência” (linhagem genética) com “filiação”, tomada na acepção de compartilhamento da natureza espiritual. Vejam-se, a seguir, alguns lances desse embate, na transcrição de versículos do capítulo oito do Evangelho Segundo João:
“(v.33) Responderam-lhe [os judeus a Jesus]: Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém; como dizes tu: sereis livres?
(v.37) Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me, porque minha palavra não entra em vós.
(v.39, 40) Responderam e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão. Mas agora procurais matar-me a mim, homem que vos tem dito a verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não procedeu assim.
(v.43) Por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra”.
No propósito de corrigir o discutido equívoco, de gravíssimas consequências, Jesus usou palavras fortes, censuras enfáticas à hipocrisia, como a que vimos acima, e ilustrações argumentativas, tanto verbais como fatuais.
Por exemplo, quando certo intérprete da Lei, com o intuito de pô-lo à prova, perguntou-lhe: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10.29), o divino Mestre aproveitou essa oportunidade para insistir no ataque ao equivocado preconceito. Vamos traduzi-lo com a seguinte formulação: “judeus, filhos de Deus porque descendentes de Abraão versus não-judeus ou bastardos espirituais, cães”.
O que fez Jesus? Para responder ao inquiridor, compôs uma parábola. Nela, mostrou o comportamento impiedoso de um sacerdote e de um levita judeus. Estes, encontrando um homem ferido, vítima de salteadores, negaram-lhe socorro.
A atitude desumana desses judeus, de destacadas referências religiosas (sacerdote e levita), foi francamente oposta à de um estrangeiro (um samaritano). Passando, também, por aquele caminho, o dito estrangeiro moveu-se de íntima compaixão pelo necessitado e o acudiu (Lc 10.30-37).
Assim, pois, do paralelo contrastivo “judeu x estrangeiro”, Jesus fez um argumento verbal, propiciado pela inquirição do intérprete da Lei.
Ilustrativamente, Jesus mostrou que o estrangeiro da parábola tivera uma atitude compatível com a de um filho de Deus, ao contrário dos dois judeus, que se revelaram meros descendentes físicos de Abraão. A propósito disso, o apóstolo Paulo escreveria mais tarde: “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm 9.6).
Nessa mesma linha didática, mas já passando do verbal para o fatual, ou seja, passando da palavra para o fato ou ação, Jesus fez questão de destacar, no episódio da cura de dez leprosos, o fato de que apenas um deles, exatamente o não-judeu, tivesse agido corretamente. Observou: “Não foram dez os limpos? E onde estão os nove? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?” (Lc 17.18).
Pois bem, na condição de o Profeta de Deus, por excelência, Verbo divino feito carne, portanto, de profundo sabedor de tudo e de todos (“Agora vemos que sabes todas as coisas” – Jo 16.30), não conheceria Jesus a grandeza da mulher cananeia? Não saberia ele que ela estava apta a oferecer-lhe elementos para a construção de um argumento vivo, de um argumento-fato, em favor de seu extraordinário propósito doutrinário?
Sem dúvida! Servindo-se, então, do oportuno daquele encontro, o Mestre lançou mão de um argumento ad hominem: ele SIMULOU, no trato com aquela mulher, um comportamento de frieza xenófoba, próprio dos seus oponentes, para demonstrar o absurdo de tal comportamento e do erro conceitual que o sustentava.
Com efeito, a simulação dialética de Jesus, nesse episódio, abriu espaço a que a mulher cananeia exteriorizasse toda a sua grandiosa capacidade para, crendo nele, ser uma filha de Deus, ao invés de ser um cachorrinho.
Daí, a posterior afirmação do Evangelista: “Veio [o Verbo divino] para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome” (Jo 1.11-12). Ela creu e confessou publicamente a sua fé (Rm 10.9-10).
Importa observar que Jesus só levou a simulação retórica, ou dramatização didática, até ao ponto em que a mulher terminou a revelação de seus enormes valores humanos, traduzidos em palavras e gestos de inteligência e sabedoria. Admiravelmente, ela diagnosticara o mal que acometia sua filha (possessão demoníaca), procurara a Pessoa certa para resolver seu problema (Jesus Cristo) e se posicionara com inarredável autodeterminação na busca de seu objetivo: a cura da menina.
Concluída a exposição do perfil dela, e concluída a consecução do propósito de Cristo, ele exclamou: “Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres. E, desde aquele momento, sua filha ficou sã” (Mt 15.58).
Entenda-se: Jesus, o judeu divino, assumiu, postiça e caricatamente, o comportamento de judeus (des)humanos, para execrar com maior veemência o tal comportamento.
Há certa semelhança entre esse expediente retórico empregado por Jesus e aquele que Montesquieu, escritor filosófico francês (séc. XVIII), empregou em sua obra “L’esprit des lois”, mais exatamente no texto “De l’esclavage des nègres” (Apud AVISSEAU, P. Littérature Française. Paris: Les éditions de l’école, 1965).
O que fez Montesquieu? Para combater a escravização dos negros africanos, o barão de la Brède et de Montesquieu assumiu uma postura sutilmente irônica, construindo vários argumentos “a favor” do regime escravista.
Se ele não tivesse introduzido o seu discurso, declarando sarcasticamente: “Si j’avais à soutenir le droit que nous avons de rendre les nègres esclaves, voici ce que je dirais” [Traduzimos: “Se eu tivesse que sustentar o direito que nós temos de escravizar os negros, eis o que eu diria”] –, e se não conhecêssemos mais a seu respeito, além do que transmite o citado texto, o que aconteceria?
Seríamos induzidos a pensar que Montesquieu tivesse sido um terrível partidário do escravismo. Ou seja, atribuir-lhe-íamos um posicionamento ideológico exatamente contrário ao que ele tinha.
Do mesmo modo, se a nossa informação sobre Jesus se limitasse ao citado relato de Mateus, teríamos razão para admitirmos que fosse de Jesus o arrogante e parcialmente impiedoso comportamento ali adotado por ele.
A verdade, porém, é que não precisamos de um “prefácio de Montesquieu”, para sermos alertados sobre a estratégia retórica do Messias nessa sua argumentação magistral. E por que não?
Porque temos toda a Bíblia para testemunhar a respeito dele (Jo 5.39)! E ainda: temos o conhecimento de que a leitura proficiente de um texto de alto teor ideológico não se limita à recepção do que nele se diz explicitamente, mas empenha-se na percepção de seus implícitos. Assim, pois, sobejam-nos recursos para o correto entendimento da narrativa de Mateus.
Não fosse a limitação espacial imposta à publicação jornalística, procederíamos a uma análise hermenêutica mais acurada do texto sob enfoque, cuja chave exegética é o pronunciamento de Jesus: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (op. cit., v.24). Finalizaremos o nosso artigo com uma breve consideração sobre tal ponto.
Por que afirmamos ser o referido pronunciamento a chave que abre o entendimento do texto? Porque a estranheza de que se reveste é ostensiva demais, para que não se perceba que ele está chamando a atenção sobre si; que está conclamando ouvidos dispostos a ouvirem o que ele, realmente, tem a dizer. Se não, vejamos.
O conhecimento de que a relação de Jesus Cristo com Israel seria de primazia e não de exclusividade é fato por demais estabelecido. Isaías profetizara, com setecentos anos, aproximadamente, de antecedência: “Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra” (Is 49.6).
Assim, pois, predisseram-no os profetas messiânicos, apregoaram-no os discípulos de Jesus, obviamente instruídos por ele. A respeito disso, aliás, foram-lhes transmitidos alguns dos últimos ensinos do Mestre:
“Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse e, ao terceiro dia, ressuscitasse dos mortos. E em seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém. E destas coisas sois vós testemunhas” (Lc 46-48).
Em suma, as palavras que Jesus Cristo dissera, colocando os judeus como exclusivos destinatários dos benefícios do Messias, ele as extraíra do entendimento equivocado deles e as usara, para combater-lhes a insensatez. De fato, tais palavras não traduziam a perfeita consciência que ele tinha a respeito de seu compromisso com a humanidade.
Exatamente por esse motivo é que Jesus não se negara a dar o pão da cura, da libertação e da salvação a milhares de não-judeus, sem, jamais, ter-lhes dificultado a aproximação, mediante a absurda (in)justificativa do “Não é bom pegar o pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos”. A propósito, atente-se para as seguintes colocações:
Acaso eram “ovelhas perdidas da casa de Israel” o centurião romano, a cuja casa Jesus se dispôs a ir para curar-lhe o servo? (Mt 8.7). E o possesso de Gadara (uma das dez cidades gregas confederadas ao sul do mar da Galileia), em cuja direção Jesus se encaminhou, para libertá-lo de uma legião de demônios? (Lc 8.26-39). E todos os doentes da Síria, “acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e paralíticos”, os quais ele curou? (Mt 4.24).
Decididamente, Jesus não tinha escassez de pão, e não o negaria a qualquer que lho pedisse, ou peça. Não poderia negar-se a si mesmo e à sua missão. Ele é o pão de Deus que desce do céu e dá vida ao mundo (Jo 6.33).
Soli Deo Gloria!
(Maria Helena Garrido Saddi, professora doutora em Letras/UFG, membro da Catedral Evangélica Hebrom, e-mail: - hgsaddi@gmail.com)
Caramba! Como é gostoso saborear um texto bem construido e fundamentado. Belchor
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