Por Augustus Nicodemus Lopes
Quando Paulo Romeiro escreveu Evangélicos em
Crise em meados da década de 90, ele apenas tocou em uma das muitas áreas em que
o evangelicalismo havia entrado em colapso no Brasil: a sua incapacidade de
deter a proliferação de teologias oriundas de uma visão pragmática e
mercantilista de igreja, no caso, a teologia da prosperidade.
Fica cada vez mais claro que os evangélicos
estão atualmente numa crise muito maior, a começar pela dificuldade – para não
falar da impossibilidade – de ao menos se definir hoje o que é ser
evangélico.
Até pouco tempo, “evangélico” indicava
vagamente aqueles protestantes de entre todas as denominações – presbiterianos,
batistas, metodistas, anglicanos, luteranos e pentecostais, entre outros, que
consideravam a Bíblia como Palavra de Deus, autoritativa e infalível, que eram
conservadores no culto e nos padrões morais, e que tinham visão
missionária.
Hoje, no Brasil, o termo não tem mais essa
conotação. Ele tem sido usado para se referir a todos os que estão dentro do
cristianismo em geral e que não são católicos romanos: protestantes históricos,
pentecostais, neopentecostais, igrejas emergentes, comunidades dos mais variados
tipos, etc.
É evidente a crise gigantesca em que os
evangélicos se encontram: a falta de rumos teológicos definidos, a
multiplicidade de teologias divergentes, a falta de uma liderança com autoridade
moral e espiritual, a derrocada doutrinária e moral de líderes que um dia foram
reconhecidos como referência, o surgimentos de líderes totalitários que se
auto-denominam pastores, bispos e apóstolos.
A conquista gradual das escolas de teologia
pelo liberalismo teológico, a falta de padrões morais pelos quais ao menos
exercer a disciplina eclesiástica, a depreciação da doutrina, a mercantilização
de várias editoras evangélicas que passaram a publicar livros de linha não
evangélica, e o surgimento das chamadas igrejas emergentes. A lista é muito
maior e falta espaço nesse post.
Recentemente um amigo meu, respeitado professor
de teologia, me disse que o evangelicalismo brasileiro está na UTI. Concordo com
ele. A crise, contudo, tem suas raízes na própria natureza do evangelicalismo,
desde o seu nascedouro.
Há opiniões divergentes sobre quando o moderno
evangelicalismo nasceu. Aqui, adoto a opinião de que ele nasceu, como movimento,
nas décadas de 50 e 60 nos Estados Unidos. Era uma ala dentro do movimento
fundamentalista que desejava preservar os pontos básicos da fé (veja meu post
sobre Fundamentalismo), mas que não compartilhava do espírito separatista e
exclusivista da primeira geração de fundamentalistas.
A princípio chamado de “neo-fundamentalismo”, o
evangelicalismo entendia que deveria procurar uma interação maior com questões
sociais e, acima de tudo, obter respeitabilidade acadêmica mediante o diálogo
com a ciência e com outras linhas dentro da cristandade, sem abrir mão dos
“fundamentos”.
Eles queriam se livrar da pecha de
intransigentes, fechados, bitolados e obscurantistas, ao mesmo tempo em que
mantinham doutrinas como a inerrância das Escrituras, a crença em milagres, a
morte vicária de Cristo, sua divindade e sua ressurreição de entre os mortos.
Eram, por assim dizer, fundamentalistas esclarecidos, que queriam ser
reconhecidos academicamente, acima de tudo.
O que aconteceu para o evangelicalismo chegasse
ao ponto crítico em que se encontra hoje? Tenho algumas idéias que coloco em
seguida.
1. O diálogo com católicos, liberais,
pentecostais e outras linhas sem que os pressupostos doutrinários tivessem sido
traçados com clareza. Acredito que podemos dialogar e aprender com quem não é
reformado. Contudo, o diálogo deve ser buscado dentro de pressupostos claros e
com fronteiras claras. Hoje, os evangélicos têm dificuldades em delinear as
fronteiras do verdadeiro cristianismo e de manter as portas fechadas para
heresias.
2. A adoção do não-exclusivismo como princípio.
Ao fazer isso, os evangélicos começaram a abrir a porta para a pluralidade
doutrinária, a multiplicidade de eclesiologias e o relativismo moral, sem que
tivessem qualquer instrumento poderoso o suficiente para ao menos identificar o
que estivesse em desacordo com os pontos cruciais.
3. O abandono gradual da aderência a esses
pontos cruciais com o objetivo de alargar a base de comunhão com outras linhas
dentro da cristandade. Com a redução cada vez maior do que era básico, ficou
cada vez mais ampla a definição de evangélico, a ponto de perder em grande parte
seu significado original.
4. O abandono da confessionalidade, das grandes
credos e confissões do passado, que moldaram a fé histórica da Igreja com sua
interpretação das Escrituras. Não basta dizer que a Bíblia não tem erros.
Arminianos, pelagianos, socinianos, unitários, eteroteólogos, neopentecostais –
todos afirmarão isso.
O problema está na interpretação que fazem
dessa Bíblia inerrante. Ao jogar fora séculos de tradição interpretativa e
teológica, os evangélicos ficaram vulneráveis a toda nova interpretação, como a
teologia relacional, a teologia da prosperidade, a nova perspectiva sobre Paulo,
etc.
5. A mudança de uma orientação teológica mais
agostiniana e reformada para uma orientação mais arminiana. Isso possibilitou a
entrada no meio evangélico de teologias como a teologia relacional, que é
filhote do arminianismo. Permitiu também a invasão da espiritualidade mística
centrada na experiência, fruto do reavivalismo pelagiano de Charles
Finney.
Essa mudança também trouxe a depreciação da
doutrina em favor do pragmatismo, e também o antropocentrismo no culto, na
igreja e na missão, tudo isso produto da visão arminiana da centralidade do
homem.
Mas talvez o pior de tudo foi a perda da
cosmovisão reformada, que serviria de base para uma visão abrangente da cultura,
ciência e sociedade, a partir da soberania de Deus sobre todas as áreas da vida.
Sem isso, o evangelicalismo mais e mais tem se inclinado a ações isoladas e
fragmentadas na área social e política, às vezes sem conexão com a visão cristã
de mundo.
6. Por fim, a busca de respeitabilidade
acadêmica, não somente da parte dos demais cristãos, mas especialmente da parte
da academia secular. Essa busca, que por vezes tem esquecido que o opróbrio da
cruz é mais aceitável diante de Deus do que o louvor humano, acabou fazendo com
que o evangelicalismo, em muitos lugares, submetesse suas instituições
teológicas aos padrões educacionais do Estado e das universidades.
Padrões esses comprometidos metodológica,
filosófica e pedagogicamente com a visão humanística e secularizada do mundo, em
que as Escrituras e o cristianismo são estudados de uma perspectiva não cristã.
Abriu-se a porta para o velho liberalismo.
Não há saída fácil para essa crise. Contudo,
vejo a fé reformada como uma alternativa possível e viável para a igreja
evangélica brasileira, desde que se mantenha fiel às grandes doutrinas da graça
e aos lemas da Reforma, e que faça certo aquilo que os evangélicos não foram
capazes de fazer:
(1) dialogar e interagir com a diversidade
delineando com clareza as fronteiras do cristianismo;
(2) abandonar o inclusivismo generalizado e
adotar um exclusivismo inteligente e sensível;
(3) voltar a valorizar a doutrina,
especialmente os pontos fundamentais da fé cristã expressos nos credos e
confissões, que moldaram os inícios do movimento evangélico.
Talvez assim possamos delinear com mais clareza
os contornos da face evangélica em nosso país.
***
Augustus Nicodemus Lopes é um dos mais respeitados teólogos brasileiros. Seus textos podem ser lidos no excelente blog O Tempora, O Mores!
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