Unico SENHOR E SALVADOR

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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Um mergulho nas entranhas do mundo muçulmano



Salatiel Soares Correia

 O historiador holandês Peter Demant rastreia as origens do mundo muçulmano traçando um panorama histórico da formação e evolução do islamismo, discutindo seus impasses contemporâneos e as raízes de sua tensa relação com o Ocidente e apontando caminhos possíveis para se evitar uma guerra entre civilizações

A cena foi impressionante. O primeiro avião aproximou-se e colidiu com um daqueles dois enormes edifícios de Nova York. Em seguida, veio o segundo avião e chocou-se, alguns metros abaixo, com a outra torre, deixando em chamas os dois edifícios. Dois gigantes que levaram consigo, ao cair, mais alguns prédios vizinhos. 

Fogo, fumaça, poeira, uma montanha de destroços e quase 3 mil pessoas mortas foi o que, em poucas horas, transformaram-se aqueles símbolos de concreto da globalização. Uma tragédia. Como se isso não bastasse, mais dois aviões foram sequestrados. 

O terceiro colidiu com o prédio da sede do Departamento de Defesa do país. O quarto caiu em campo aberto, no Estado da Pensilvânia.

Estávamos em um dia que o mundo jamais esquecerá: 11 de setembro de 2001. Foi o mais ousado ataque de uma organização adepta do islamismo — a Al-Qaeda —, justamente contra a nação mais poderosa do planeta, gestora do capitalismo mundial: os Estados Unidos da América.

A primeira tendência perante tão inusitado acontecimento é julgar que o islamismo seja uniforme dentro do mundo muçulmano. Não o é. Na verdade, o Islã é, sem dúvida, a religião que mais cresce no mundo e propagou-se de maneiras diferentes do mundo árabe para fora dele.

O ataque às torres gêmeas, e agora o ataque em Paris, na França, certamente foi a face mais visível de uma luta de séculos que travam muitos países adeptos dessa religião contra o valor mais significativo inerente ao Ocidente: a modernização. O Islã é uma religião de violência? Como uma religião de ricas tradições culturais convive com a violência de homens-bombas? Por que o Islã é a religião que mais cresce no mundo?

Empenhado em abordar questões dessa natureza, um dos maiores especialistas mundiais no assunto escreveu um livro — o único em português — destinado a um público mais amplo, interessado em conhecer uma parte do mundo que, apesar de milenar, é ainda um mistério para a maioria de nós, ocidentais. 

Trata-se da obra “O Mundo Muçulmano”, (editora Contexto, 432 páginas) de Peter Demant, um renomado historiador holandês, especializado em questões do Oriente Médio. 

Doutor pela Universidade de Amsterdã com tese sobre a colonização israelense nos territórios palestinos, Demant foi pesquisador da Universidade Hebraica em Jerusalém, onde participou ativamente de diversos diálogos acadêmicos entre palestinos e israelenses. 


Atualmente, é docente da Universidade de São Paulo, onde leciona Relações Internacionais e História da Ásia. 

Participa ativamente dos debates na televisão brasileira, especialmente do programa Globo News Painel.

Os pilares do islamismo

O Islã originou-se no Oriente Médio, de visões e vozes que se acreditam ser de origem divina. Era a voz do arcanjo Gabriel com a palavra de Deus direcionada ao profeta Maomé, fundador da religião. Ao profeta Maomé coube a missão de criação do islamismo, conforme mostram os escritos do professor Demant. “Maomé teria se assustado com a visão, mas, encorajado pela esposa, perseverou.

Continuaria a receber revelações, que falavam de um Deus único e onipotente, diante de quem cada ser humano é chamado a se submeter e venerar a palavra Islã.”

O fundador do islamismo enfrentou forte oposição, principalmente para reorganizar a cidade de Medina como a primeira comunidade governada por leis muçulmanas. Vencidos esses obstáculos, Ma­moé elevou sua liderança, fa­zendo-se não mais um simples pregador religioso, mas também um grande líder nos campos político e militar, fato que muito influiu na decisão de várias tribos de aliar-se a ele.

Islã significa submissão. Sub­missão a um Deus único e onipotente que todo ser humano deve reverenciar e ao qual deve se submeter. A religião islâmica é a “caçula” das três principais religiões do mundo: o Judaísmo, a mais antiga, com 3 mil anos; o Cristianismo, com cerca de 2 mil anos, e o Islã, com aproximadamente 1600 anos.

Os fiéis ao islamismo têm basicamente cinco deveres a cumprir, os quais se confundem com os pilares da religião. 

São eles:

Shahada ou Testemunho — O testemunho centra-se principalmente na existência de um Deus único, tendo Maomé como seu profeta. O Islã acredita no dia do juízo final, em que Deus aceitará os bons, indo os maus para o inferno.

Salat — Esse princípio determina que o praticante do Islã deve rezar cinco vezes ao dia, mediante a convocação feita por meio do som emitido das torres das mesquitas. A reza é uma veneração a Deus e não um pedido de benefícios. (Vale um testemunho: presenciei, quando em visita à Turquia, a obediência de um comerciante muçulmano. Este, no momento em que me atendia, ao ouvir o som de chamamento na torre da mesquita, teve a reação imediata de desligar o rádio e começar a rezar.)

Zakat ou Esmola — É uma espécie de dízimo destinado a fins sociais.

Ramadan (ou Ramadã) — Trata-se de um jejum, em que os fiéis mantêm-se em abstinência desde o nascer até o por do sol durante o mês inteiro. Nesse período, além de comida e bebida (água inclusive), os muçulmanos abstêm-se também de relações sexuais.

Haiji — É a peregrinação à cidade sagrada de Meca e a seus santuários, que todos os muçulmanos saudáveis e com condições devem fazer pelo menos uma vez na vida.

Não deixa de ser intrigante a expansão islâmica. À época da criação dessa religião, a população do Oriente Médio era esmagadoramente cristã e, nos primórdios do Islã, 95% dos habitantes dessa região do planeta manifestavam-se como adeptos do cristianismo, enquanto apenas 5% praticavam o Islã. 

O curioso é que o quadro hoje é diametralmente oposto: na região, 95% são adeptos do Islã e só 5% assumem-se cristãos.

É notório também o crescimento da religião muçulmana em vários países de outras partes do mundo. Alguns exemplos apresentados pelo professor Demant ajudam a entender a maneira diferenciada como a mensagem da religião de Maomé propagou-se planeta afora, penetrando as mentes e os corações sobretudo dos mais pobres e carentes. Aliás, este parece ser o real motivo do espantoso êxito que vem tendo essa religião desde a sua fundação.

Manifestante simula pena de morte por apedrejamento

A expansão muçulmana

A história de expansão do mun­do muçulmano e, consequentemente, do Islã pode ser segmentada, di­da­ticamente, em cinco distintos períodos. Esse pe­ríodos compreendem a expansão e, às vezes, mo­men­tos de recuo, sempre acompanhados de um ins­trumento característico do Es­tado atrelado à religião: a guerra.

O primeiro período, que abrange a faixa temporal que vai do século 7 ao 11, é conhecido co­mo a fase clássica do Islã, na qual ocorreu o primei­ro ciclo de expansão da religião fundada pelo profeta. Nessa época, o Islã ex­pan­diu-se, primeiramente, sob a liderança do próprio Maomé e, em seguida, sob a influência direta de seguidores que conheceram o fundador da religião nos primeiros momentos. 

Desse modo, o mundo muçulmano tornou-se maior fora da Península arábica principalmente em países do Im­pério Bizantino como Egito, Síria, Pa­les­tina e partes do Cáucaso

Vale ressaltar nesse período a derrota e posterior islamização do antigo Império Persa. Este acabaria desenvolvendo uma seita que viria a se tornar uma ideologia mi­­lenarista, focada na justiça e no martírio. Trata-se de uma das ra­mi­­ficações do Islã bastante in­fluente no país dos aiatolás: os xiitas.

A fim de compreender um pouco mais a complexidade do universo islâmico, é imprescindível estabelecer a diferença básica entre a minoria xiita — que representa apenas 16% do mundo muçulmano — e a facção majoritária do islamismo, os sunitas — que agrega os 84% restantes. Estes últimos consideram que Maomé não tinha herdeiros, enquanto os primeiros acreditam na hereditariedade familiar do profeta.

Os xiitas são mais radicais que os sunitas. Entretanto, são os sunitas que estão identificados com os protestos contra governos e a chocante atuação dos homens-bomba que todos já nos acostumamos a ver nos atentados terroristas. Uma curiosidade: embora seja majoritária no Iraque, a seita xiita foi cruelmente perseguida nos tempos em que uma conhecida personalidade sunita mandava por lá: o ditador Saddam Hussein.

Voltando ao processo de expansão do mundo muçulmano, no período conhecido como a idade média muçulmana (do século 11 ao 14), o Islã sofreu reveses no Oriente Médio. Entretanto, sua expansão prosseguiu na Ásia Central e na Índia. 

Do século 15 ao 17, a religião do profeta teve considerável expansão, graças principalmente a um elemento muito caro aos impérios daquela época: a pólvora. 

Por causa do poderio de seus exércitos, o Islã pôde celebrar a expansão do Império Otomano (turco) no Oriente Médio; os grãos-mughals (imperadores muçulmanos) na Índia, além da propagação dessa fé na África e no sudeste asiático.

O período que compreende o século 19 e o século 20 é caracterizado pela influência europeia na religião dos seguidores de Mao­mé. Atualmente, o professor De­mant prevê que estamos prestes a iniciar outra época onde as tentativas de descolonização representam um novo equilíbrio entre o Islã e o Ocidente.

É simplista pensar no mundo muçulmano apenas como uma religião. O correto é esforçar-se para en­xergar esse universo como uma civilização. Há, na verdade, vários “islãs”, que se propagaram e ainda se propagam nos vários países em que o islamismo logrou predominar como cultura. Veja­mos alguns exemplos.

A Turquia e os países árabes são dois típicos exemplos onde a secularização veio a subjugar o poder dos árbitros do direito islâmico (ulemás). Especificamente sob o comando de seu estadista maior Ataturk, a Turquia modernizou-se, tornando-se um Estado laico, no qual religião e Estado não se misturam. 

Quem conhecer aquele país constatará o quão europeia se fez a sede do antigo Império Otomano, hoje devoto de um islamismo moderado, inserido no Estado democrático de direito. 

Por exemplo, associar as mulheres turcas às do Afega­nis­tão, sempre ocultas sob sombrias burcas, é equivocar-se completamente. E o que faz toda a diferença é a cidadania que pulsa na eu­ropeizada Turquia e que nem de longe insinua-se no Afeganistão.

Manifestantes palestinos preparam-se para confronto com israelenses

A realidade de um vizinho dos turcos — o Irã — evidencia uma face bem mais dura do islamismo. Na terra dos aiatolás não só impera a fusão entre Estado e religião. Lá, naquele imenso país asiático, são radicalíssimos xiitas os chefes políticos e religiosos.

A expansão do islamismo na Índia teve suas dificuldades de dominação ante a forte presença de uma prática religiosa própria da cultura indiana: o Hinduísmo. Vale ressaltar que a criação, em 1947, de um país de 157 milhões de habitantes — o Paquistão — provocou um intenso fluxo migratório de sentido duplo: de muçulmanos rumo ao novo país e de hindus rumo à Índia. 

Cerca de 5 milhões de hindus seguiram para o país de Mahatma Gandhi, enquanto 7 milhões de muçulmanos foram viver o país da ex-ministra Benazir Bhutto. Desse processo, emergiu um conflito que persiste até hoje, com um custo em vidas ceifadas muito alto, um verdadeiro genocídio: morreram quase 500 mil pessoas.

As guerras inerentes à expansão do islã não ocorreram no maior país muçulmano do mun­do: a Indonésia. Lá, segundo o professor Demant, a “islamização seguiu um rumo completamente diverso. O Islã nunca foi imposto por novos conquistadores, mas trazido pacificamente por viajantes, mercadores e sufis ambulantes”. Mas a Indonésia é uma exceção à regra de que o islamismo traz consigo, no momento em que se expande mundo afora, guerras e conflitos.

O século 20 e as duas grandes guerras mundiais que ele registrou viriam atestar que o mundo muçulmano — principalmente o Oriente Médio — é um gigantesco barril de pólvora sempre prestes a explodir. 

Na Primeira Guerra Mundial, o fato mais evidente foi a queda do Império Otomano e o início da construção da Turquia que hoje se conhece: europeizada, moderna, com uma população esmagadoramente muçulmana, mas sem radicalismos. 

Na Segunda Gran­de Guerra, o Oriente Médio tornou-se o centro das atenções por causa da disputa pelo precioso líquido que move o mun­do moderno: o petróleo. Quan­to a esse fato, afirma o autor que “a Segunda Guerra Mundial tornou o Oriente Médio um campo de batalha (com exceção da Turquia, que permaneceu neutra). Os nazistas cobiçaram o petróleo e os Aliados, por sua vez, tentaram protegê-lo”.

Não se pode deixar de associar o fim da Segunda Guerra Mun­dial ao holocausto judeu e o que dis­so resultou, no coração do mundo islâmico: a criação de um Estado repleto de simbolismo e culpa dos aliados pelo ocorrido com os judeus — Israel. 

Mo­der­no e desenvolvido, Israel impulsionaria uma série de conflitos no mundo árabe, principalmente em em relação ao povo que foi expulso da terra de que se sente dono para a criação do Estado judeu — os palestinos.

A Palestina nunca conseguiu formar um Estado que lhe desse identidade. Por essa razão, a constituição do Estado de Israel elevou o clima de tensão no mundo árabe: “Cerca de 750 mil palestinos fugiram em circunstâncias controversas para os países vizinhos, onde sua presença se perpetuou ano a ano e logo constituiu um problema humanitário e político de grande magnitude”.

Os palestinos são um povo sem pátria e muitas vezes recorreram ao uso do terror como forma de expressar sua dor perante o mundo. A questão palestina constitui um dos eternos focos de tensão no mundo muçulmano, que continua sem data definida para acabar. To­lerância para com o outro e a ar­te da negociação certamente fazem parte do caminho de busca da paz.

Conflitos em outras frentes do mundo árabe, como no sul do Líbano, com a atuação do grupo ra­dical Hezbollah, a recente Guer­ra do Golfo, a Líbia, a fronteira da Ín­dia com o Paquistão ou a recentíssima guerra cívil na Síria são todos exemplos do quanto o mundo muçulmano vive um clima de eterna tensão, desde os tempos do profeta Maomé. 

O fracasso do desenvolvimento no mundo mu­çulmano articulado à persistência da recusa em aceitar os valores da modernidade em um tempo em que esta se globaliza mostra que a solução de problemas no mundo islâmico nunca é fácil.

Atual­men­te, as profundas desigualdades oriundas da globalização estão a exigir do Ocidente, como nunca, a capacidade de repensar suas ações. Um indicador nada desprezível dessa necessidade é a avassaladora expansão que vem tendo a prática do islamismo. 

A religião de Maomé está aí a arrebanhar os mais pobres que nela enxergam a restauração de uma utopia que alimenta o combustível, tanto da vida terrena quanto daquela prometida pelo Islã no Paraíso.

Freios a modernidade

Um grande impedimento à modernização de várias sociedades islâmicas (a Turquia é uma exceção) reside no papel extremamente desigual que a mulher ocupa em vários países do mundo muçulmano. Inexiste por lá a mulher livre, independente, tão comum entre nós, ocidentais. 

Questões relativas à sexualidade são punidas com extremo rigor, não sendo incomum decretar-se a morte para aquela que ouse avançar o sinal. Em regra, as punições são severas, muito severas. Chega-se ao ponto de desfigurar com ácido o rosto de mulheres que cometam a ousadia de exibir em público seus cabelos — tão-somente os cabelos!

Nos países extremistas, quanto mais vestida da cabeça aos pés a mulher mais lhe é concedido o a­ces­so aos espaços públicos. Caso contrário, enclausuram-se em suas casas, podendo se exibir com mais liberdade para quem tem sobre ela o direito de posse: o marido.

A propósito das relações de gênero na cultura islâmica, é interessante destacar aqui alguns pontos, evidenciados pelo professor De­mant. Sobretudo no mundo mu­­çulmano mais extremado, a igualdade entre homens e mulheres é uma realidade absolutamente impensável.

1 — Por muito tempo, a fecundidade da mulher foi considerada um mero recurso econômico. Em nada diferente do gado, do trigo ou do dinheiro.

2 — A Sharia (leis islâmicas que regulam o cotidiano, as práticas relacionadas ao comportamento, à alimentação) permite, em alguns países, a poligamia. Assim, ao homem é permitido ter várias esposas, desde que tenha condições de sustentá-las e de satisfazê-las sexualmente. Caso essas condições não sejam atendidas, cai ele em desgraça perante a sociedade.

3 — Nos meios fundamentalistas, o véu é considerado uma marca da mulher muçulmana praticante. A burca usada no Afeganistão tornou-se um símbolo mundial do isolamento público das mulheres afegãs.

4 — Diferentemente do modo como se costuma ensinar nas religiões cristãs, o coito é considerado um ato de harmonia com o Cosmos.

5 — O aborto, a rejeição à contracepção e a homossexualidade são considerados “desvios da natureza”.

6 — A mulher acusada de adultério é punida, no Islã fundamentalista, com cem chibatadas ou a morte por apedrejamento. O mesmo não acontece com o homem que recorre a serviços de prostitutas.


Mesmo expostos sucintamente, esses pontos evidenciam o quanto a cultura da maioria dos países muçulmanos freia os ventos da modernidade. São valores completamente distintos dos que vêm se fortalecendo, cada vez mais, no Ocidente. 

Com a modernidade, rompem-se as barreiras entre opressores e oprimidos, resultando no abraçar de novos valores e na aquisição de vários direitos. Como o de dispor do próprio corpo, à educação, do voto e do casamento com quem escolher.

Fatos como os acima expostos corroboram a tese original destes escritos: a solução dos conflitos entre o Ocidente e o mundo muçulmano exige uma transformação profunda na forma de enxergá-los, uma vez que eles vão muito além da mera luta maniqueísta em que muitos querem crer. Em verdade, qualquer solução passa sobretudo pelo respeito de um para com o outro. 

Pelo respeito aos valores de sociedades milenares que lutam para tornar-se ou não modernas. Nesse sentido, equivoca-se a modernidade que insiste em impor uma uniformidade cultural que as sociedades islâmicas mais radicais não estão dispostas a aceitar.

O convívio com o diferente

Aproximadamente um quarto dos 1,3 bilhão de muçulmanos vivem hoje em países não muçulmanos. Culturas que na maioria das vezes se chocam com os valores do mundo muçulmano. Viver lado a lado com o diferente, no dia a dia, não é mesmo nada fácil.

Até semana passa, antes do ataque em Paris, a França, país que mais recebe muçulmanos no mundo, era considerada um bom exemplo dessa difícil convivência. Lá, o que se constata é o evidente contraste de culturas, a começar por coisas aparentes como o uso do véu. 

De um lado, os muçulmanos têm de se tornar franceses; de outro, existe a resistência aos valores étnicos de honra que no fundo expressam valores profundamente arraigados na maioria dos países adeptos do Islã.

A não aceitação dos hábitos e costumes dos muçulmanos termina criando um forte sentimento de rejeição. “Os muçulmanos ‘se vestem diferente’, ‘oprimem suas mulheres’, têm costumes religiosos ‘primitivos’ e ‘fazem sujeira’.” 

A situação agrava-se ainda mais em um cenário de acirrada competição por emprego e o uso deliberado da “islamofobia” pelos políticos de extrema direita (como Jean Marie Le Pen), em seus discursos contra os imigrantes.

Nos Estados Unidos, a islamofobia eleva-se consideravelmente por enraizar-se em dois importantes fatores: a xenofobia e o terror. Quanto a esse aspecto do problema, esclarece o professor Demant que “imagens populares negativas do islã e do Oriente têm parcialmente a mesma origem das que proliferam na Europa. 

A estereotipagem está reproduzida na cultura popular, nos filmes de Hollywood — do ‘xeique’ Rodolfo Valentino até o Setembro Negro dos terroristas palestinos — e se encaixa em tradições xenófobas, anticomunistas, antinegras, antissemitas e antiasiáticas, e que atualmente, após o fim da Guerra Fria, projetam a negatividade do islã”.

Um fato que certamente contribuiu para exacerbar a islamofobia no mundo foi o ataque da Al-Qaeda às torres gêmeas em Nova York. Um “ato de guerra da ala mais extremista do islamismo contra a civilização ocidental em si”. Portanto, conviver lado a lado, com um outro que pensa diferente dele é certamente um enorme desafio que tem de enfrentar o mundo muçulmano que emigra em todo o planeta.


Um caldeirão em ebulição

O espectro ideológico do universo islâmico é amplo e variado. Depende do país para onde se olha. Como já foi mencionado anteriormente, há grande diferença em se olhar para uma Turquia que hoje cultiva a modernidade e a democracia, assegurando os direitos das mulheres, ou, ao contrário, focalizar o xiismo dos aiatolás iranianos.

Muito dessa diferença pode ser atribuída à menor influência dos umelás (juízes) na Turquia, quando comparada à que exercem no vizinho Irã. Por essa razão, foi possível florescer a liderança modernizadora de Ataturk no antigo império otomano, diferentemente do que se verificou na antiga Pérsia. 

Ensina o professor Demant que “os ulemás tinham no xiismo em geral, e na Pérsia (Irã) em particular, um papel bem mais forte do que no império otomano (turco), o que explica o fa­to da Turquia gerar um Ataturk, en­quanto no Irã gerou um Khomeini”.

No Iraque, a maioria xiita expressa-se de uma maneira mais moderada que a de seus coirmãos iranianos. A respeito desse assunto, o autor reitera que “a comunidade xiita, majoritária no Iraque, nunca compartilhou as posições teocráticas extremas que se tornaram predominantes no vizinho Irã após a revolução islâmica de 1978-1979”.

Predominam atualmente no Iraque duas correntes francamente opostas quanto à maneira de enxergar o futuro do país. De um lado, encontram-se os cléricos moderados que veem como positiva a cooperação dos Estados Unidos. Não apenas pela redemocratização do país, mas pelo que resulta diretamente disso: este seria o caminho mais seguro para a maioria xiita voltar ao poder. 

Poder que, por anos, esteve nas mãos do sunita Saddam Hussein. De outro, encontram-se os mais jovens, que são radicalmente contra qualquer influência nor­te-americana. Estes defendem, não só o enfrentamento ao po­de­rio dos Estados Unidos, como um governo Islâmico nos moldes do Irã. 

 Ao que tudo indica, a morte de Saddam Hus­sein não re­presentou o que dela se esperava: a construção da paz. O Ira­que permanece como um forte ponto de ebulição no caldeirão fervente do Oriente Médio.

Na Palestina, localiza-se o mais notório dos conflitos do mundo muçulmano. Lá, a ação de um partido político converte-se, às vezes, na prática da mais terrível ação política para se fazer notar perante o mundo: o terror. Terror este voltado contra o mundo judeu.

As raízes do mais globalizado conflito do planeta — o que se trava na terra de Yasser Ara­fat — vêm dos tempos bíblicos. 

O que está em disputa não é apenas a construção do Estado palestino, mas sobretudo o grande símbolo religioso de fundamental importância dentro e fora do mundo muçulmano: Jerusalém. “Jerusa­lém não só é um nome conhecido, mas também um conceito com intenso significado para grande parte da humanidade que nada tem a ver com o conflito. A mesma universalidade simplesmente não vale para Kosovo ou Kandahar.”

A Palestina foi, é e talvez sempre será ela mesma um caldeirão em ebulição. Lá convivem lado a lado povos tão diferentes como são os israelenses e os palestinos. E esses povos, cada qual com seu arsenal de razões e justificativas, julgam-se com legítimos direitos sobre a região. 

Partidos como o Hamas e as várias facções da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) fizeram uso do terror como opção política. Além dis­so, o Hamas, com sua influente rede de benefícios sociais, acaba realizando o papel que caberia ao Estado: levar esses benefícios à sociedade.

Com isso, é cada vez mais expressivo o número de seus seguidores. E estes nu­trem contra Israel um ódio tão profundo que atravessa gerações.

Em uma outra região, na fronteira da Índia com o Pa­quis­tão, vem fervendo um novo caldeirão, já prestes a também en­trar em ebulição. E aqui cabe re­lembrar a gama de variação dos conflitos do Islã com Ocidente. No caso da Índia e do Paquistão, o conflito é entre duas civilizações: a hinduísta e a muçulmana. Em outras partes do mundo muçulmano, o conflito reinante é entre o Islã e o Ocidente.

Uma região onde o Islã vem expandindo em grande velocidade seu universo de seguidores é certamente a África. Uma África completamente esquecida por um mundo que se globaliza cada vez mais. Para a imensa multidão dos deserdados da civilização ocidental, o Islã torna-se, ao mesmo tempo, um lenitivo de grande eficácia, capaz de ajudá-los a suportar as dores do mun­do, e o caminho que irá conduzi-los ao tão almejado paraíso.

A Nigéria, por exemplo, com uma população de 111 milhões de habitantes, é hoje um país majoritariamente muçulmano. Em alguns Estados — embora contestado pelo governo federal — o islamismo radicaliza-se mediante a implantação das Sharias. Vale ressaltar a ocorrência de conflitos como o da cidade de Kaduna por ocasião de um concurso de beleza, resultando em 200 mortes. 

Na mesma cidade, ocorreu um conflito sangrento entre cristãos e muçulmanos, do qual resultou, como sal­do sinistro de um massacre coletivo, a morte de 2 mil pessoas.

Outro país africano, o Sudão, navega na convivência de dois modelos — o pluralista e o fundamentalista. Nesse país de 30 milhões de habitantes, vem se acelerando o processo de adesão ao Islã a tal ponto que ele é hoje o segundo maior Estado islamista do mundo (perde apenas para o Irã). 

O Sudão tem se aliado, nos últimos anos, à organização terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, fato que vem causando grandes tensões na relação com os Estados Unidos. Mencionar Osa­ma — já eliminado pelos EUA — remete o foco para a poderosa or­ganização que, sob o seu comando, ganhou notoriedade mundial.

A Al-Qaeda é uma organização fanaticamente antiocidental, que recruta jovens oriundos não somente da classe média, mas também das classes mais desprovidas de recursos. Engenheiro de formação e integrante da elite milionária da Arábia Saudita, Bin Laden rompeu com sua pátria-mãe, por considerar que ela cometeu três crimes contra os desígnios de Deus: ocupou a terra sagrada da Arábia, apoiou a ocupação judaica de Jerusalém e impôs sofrimento aos iraquianos.

O ataque ao símbolo maior da globalização — as torres gêmeas em Nova York — mostrou ao mundo que o discurso de Bin Laden e de seus comandados não era mera retórica. O mundo ficou diferente após aquele fatídico 11 de setembro. Assim como os xiitas extremados do Irã, a Al Qaeda é a face mais visível do que vem a ser o radicalismo islâmico no mundo muçulmano.

O Egito é outro país a fazer par­te do grande caldeirão em ebulição. Acontecimentos como o assassinado do ex-presidente Anuar Sadat, ataques aos símbolos turísticos e a recente deposição e prisão do governante que por décadas co­man­dou o processo político, Hosni Mubarak, expressam o crescimento do radicalismo islâmico por meio da Irmandade Muçulma­na, que prega a volta ao conservadorismo. “Deus é o único objetivo. Maomé, o único líder. 

A Jihad é o único caminho. Morrer pela Jihad de Deus é nossa única esperança.” Valores como esses da Irmandade Muçulmana evidenciam que o Egito de hoje vive “uma clara volta à religiosidade individual e ao conservadorismo”. 

Conservadorismo que se expressa na vestimenta feminina, no número de homens barbudos, no uso do véu branco e do casaco cinza que cobre o corpo inteiro.

Qual será o amanhã?

A obra do professor Peter Demant põe em evidência a enorme diversidade abrigada no interior do mundo muçulmano. Quando se trata de assuntos complexos, faz-se imprescindível evitar os estereótipos que a mídia geralmente constrói. Essa cautela aplica-se particularmente quando se trata de um universo tão diversificado quanto o mundo islâmico, que reúne mais de 1,3 bilhão de pessoas.

Aos olhos da maioria do mundo ocidental, de uma ma­neira simplista, o Islã surge atrelado diretamente à violência. Mas estaria mesmo correta essa percepção? É realmente o Islã uma religião violenta?

Os escritos do professor Peter Demant mostram que isso não é de todo uma verdade. A expansão do Islã por meio da história não foi menos careada de violência do que o cristianismo. As Jihad Islâmicas equivalem as cruzadas cristãs. Um fato interessante que não pode deixar de ser citado é quanto o Alcorão tem mais importância para o Islã do que a Bíblia para o cristianismo. 

É o que afirma o autor: “O lugar do Alcorão no islã é incomparavelmente superior ao da Bíblia no cristianismo, não havendo qualquer paralelo com outra religião (com possível exceção do papel da Torá para judeus ortodoxos)”.

Os fundamentalistas — especialmente os islamistas —, com seu olhar de completa rejeição cabal ao Ocidente, é certamente uma parte (não o todo) do mundo muçulmano. Estes, além de rejeitarem por completo os valores ocidentais, costumam fazer uso da violência para atingir seus objetivos. 

Quanto a isso, vale ressaltar que, também outras religiões, como o protestantismo, nos Es­ta­dos Unidos; o Judaísmo, em Is­rael, e o Hinduísmo, na Índia, têm seus fundamentalistas. En­tre­tanto, o autor esclarelece o aspecto que faz toda a diferença: “O islamismo é o único a combinar um alcance global com a vontade de usar violência maciça [...] com o islã, a coexistência é tanto possível quanto necessária; em princípio, ela enriquecerá mutuamente muçulmanos e outros grupos. Com o islamismo, não há diálogo possível”.

O choque de civilizações não se dá entre a Cristã e o Islã, mas, sim, entre a modernidade universalizada e uma “versão radicalmente antimoderna do islã político”. O Islã dos islamistas não é a­penas uma religião, mas sobretudo um sistema ideológico que se contrapõe radicalmente ao Ocidente.

Que futuro se pode vislumbrar, quando se trata de uma aproximação entre o mundo muçulmano e a modernidade? Certa­men­te, a resposta para questões dessa natureza passará antes de tudo por reflexões e debates entre os próprios muçulmanos. “Não é tarefa do interlocutor não muçulmano propor mudanças no islã”, aponta o professor Peter Demant. São vários e diversos os dilemas que obstam essa futura integração.

O primeiro deles é o desafio de o próprio Islã olhar para dentro de si mesmo, a fim de repensar suas fontes de religião. Nesse sentido, “o antagonismo para com o mundo não muçulmano, a supremacia para com minorias não muçulmanas, a subordinação da mulher entre outros” devem ser necessariamente repensados. 

O segundo dilema relaciona-se com a própria tradição islâmica alicerçada em valores tribais e étnicos — valores esses que destoam da noção de cidadania inerente às sociedades modernas.

O terceiro dilema está atrelado à hostilidade da ortodoxia islâmica aos valores da modernidade e da razão alicerçados na ciência. Nesse sentido, é visível o atraso do mundo muçulmano em relação ao Ocidente. Um quarto dilema relaciona-se à aceitação ou não da democracia. Em grande parte do mundo muçulmano não existem vias legítimas de expressão popular, fato que resulta no recurso à violência como forma de expressão.

Por fim, vale ressaltar os três caminhos possíveis que aponta o autor para o Islã: adequar-se à modernização, o autoisolamento ou a identificação com o fundamentalismo muçulmano internacional, tendo como resultado a elevação do terror e a intranquilidade para o Ocidente. 

Concluindo, a solução para os problemas do mundo muçulmano é mais complexa do que se pode imaginar. Reduzir essa questão à luta entre o bem e o mal é deveras sim­plista, pois desconsidera complexos processos históricos e culturais que exigirão, antes de mais nada, um olhar de tolerância para com o outro, que é diferente do que somos.

Salatiel Soares Correia, engenheiro e mestre em Planejamento pela Unicamp, é articulista do Jornal Opção. 

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