Por José António Saraiva
Lídia Jorge dizia há quinze dias, em entrevista ao SOL, que no tempo da sua infância “havia a ideia que a mulher tinha que ser como a galinha, útil em tudo”. E revelava que, ainda em criança, a mãe, a avó e a tia lhe pediam para ler alto romances portugueses, enquanto elas “ficavam a bordar, a costurar, a fazer cestos…”
Tenho muita estima por Lídia Jorge. Uma estima que herdei do meu pai, que me falava dela com muito entusiasmo depois de ler o seu livro O Cais das Merendas. O meu pai não era uma pessoa de elogio fácil, pelo que, quando se entusiasmava com alguma coisa em matéria literária, o elogio era para ser levado a sério.
Ao longo dos anos, o meu pai foi-me falando de escritores e de livros que estava a ler ou que o tinham marcado. Além de Lídia Jorge, referia com frequência Agustina Bessa-Luís, por cuja escrita se apaixonou após ler A Sibila. De Nuno Bragança, ofereceu-me um dia A Noite e o Riso. Gostava pessoalmente de José Cardoso Pires, que chegou a ser visita de nossa casa, mas dizia que, depois O Hóspede de Job, passara a escrever sempre o mesmo livro.
Nunca me falou de António Lobo Antunes e não gostava de José Saramago, cuja escrita considerava rude e com falta de elegância. Dos mais antigos, deu-me (num aniversário) a História de Portugal de Alexandre Herculano, encadernada. Venerava Oliveira Martins e o seu Portugal Contemporâneo. Deliciava-se com Eça de Queirós, tendo-me emprestado A Cidade e as Serras anotado a lápis.
Não gostava muito de A Selva, de Ferreira de Castro, mas adorava A Lã e a Neve. Dos poetas, endeusava positivamente Fernando Pessoa e não poupava elogios a Herberto Hélder.
Dos estrangeiros, falava recorrentemente de James Joyce e do seu Ulisses (no qual eu nunca consegui passar da página 30), e lembro-me de me ter oferecido, entre muitos outros, o Grande Sertão, Veredas, de João Guimarães Rosa, e o Cem Anos de Solidão, de García Márquez. Certo dia emprestou-me O Pacto, de James A. Michener, uma grandiosa epopeia da entrada dos boers na África do Sul.
Inversamente, detestava o neo-realismo, rejeitando com vigor a escrita como veículo de propaganda política. Desconsiderava, por exemplo, Soeiro Pereira Gomes e o seu celebrado Esteiros. A sua ruptura com o PCP, consumada em meados dos anos 60, reforçou esta aversão. O que o entusiasmava na literatura era a criatividade, a capacidade para reinventar a escrita, a invenção das palavras, a originalidade.
Mas tudo isto veio a propósito de uma frase de Lídia Jorge sobre as mulheres nos anos 50.
Já escrevi várias vezes sobre o feminismo, que a meu ver seguiu um caminho errado. Em vez de falar na ‘igualdade de oportunidades’ para todos, homens ou mulheres, apostou numa ‘igualdade’ pura e dura, sem distinção de género – convocando as mulheres para queimarem os soutiens, cortarem o cabelo curto, vestirem-se à homem e usarem pasta à executivo.
Este tipo de feminismo conduziu a um beco sem saída, porque as mulheres não queriam – com toda a razão – parecer-se com os homens. Queriam continuar a parecer mulheres, embora com direitos iguais. Acontece que esses direitos iguais, inquestionáveis, abanaram a sociedade de alto a baixo, revolvendo-lhe as entranhas.
A entrada das mulheres no mercado de trabalho deu-lhes independência económica, permitindo-lhes libertarem-se das garras de maridos exploradores ou tirânicos, ou da ‘escravidão do lar’, como algumas lhe chamavam. Mas teve enormes consequências na estabilidade das famílias. Na sociedade matriarcal as mulheres eram o pilar da família: efectuavam os trabalhos domésticos, transmitiam segurança aos filhos através da presença em casa, garantiam o equilíbrio familiar.
Quando as mulheres começam a sair de casa para irem trabalhar, todo este equilíbrio naturalmente desaba.
A casa fica vazia durante o dia inteiro e há tarefas que não se executam. As crianças não têm com quem ficar e vão para creches. As mulheres chegam a casa estafadas ao fim do dia de trabalho, não tendo paciência para os filhos nem para fazer nada. Muitos maridos protestam – e elas reclamam (justamente) com eles por não ajudarem. Só que os homens resistem, pois nunca viram os seus pais dividir as tarefas caseiras. O mal-estar no casal instala-se. Todos nós conhecemos situações destas.
A juntar a isto, o facto de as mulheres passarem mais tempo no trabalho do que em casa tem obviamente consequências.
Passam a preocupar-se muitas vezes mais com as carreiras do que com a família, começam a ter filhos mais tarde e têm menos filhos. Os filhos beneficiam menos da presença das mães. As mulheres conversam mais tempo com alguns colegas do que com os maridos, criando relações de cumplicidade. A família relativiza-se, passa a segundo plano. Os adultérios, concretizados ou apenas idealizados, tornam-se mais frequentes.
Vendo o colapso de muitos casamentos, os jovens começam a hesitar em casar. As uniões tornam-se mais frágeis, mais efémeras, menos estáveis. Vive-se agora com uma pessoa e logo a seguir com outra. As mulheres têm hoje filhos de um companheiro e amanhã doutro – passando-se o mesmo com os homens. Os filhos sofrem com as separações dos pais, entram em instabilidade emocional – e daí ao consumo de drogas ou às tentativas de suicídio pode ir um pequeno passo.
A crise da família traz às sociedades contemporâneas problemas infindáveis. Problemas que ninguém quer ver e de que ninguém quer falar porque não tem solução para eles.
Sabe-se que a História não anda para trás, que a conquista de direitos por parte das mulheres é irreversível, que as fadas não regressarão ao lar. Mas ninguém sabe como resolver os problemas que o progresso levantou.
Entretanto, há uma pergunta fatal, embora muito politicamente incorrecta, que não pode deixar de ser feita: as mulheres são hoje mais felizes?
Mulheres que se levantam de madrugada para ir levar os filhos à escola, que vão a correr para o emprego, que vêm a correr do emprego para chegarem a horas de ir buscar os filhos, que vão a correr para casa para fazer o jantar (contando ou não com a ajuda dos maridos) terão uma vida melhor do que as que ficavam em casa a tratar dos filhos?
Mais independentes são, sem dúvida. Mas serão mais felizes?
Curiosamente, Lídia Jorge, que sempre lutou pelos direitos femininos, quando fala dos seus tempos de infância revela nostalgia e saudade por essa sociedade que já não existe.
À pergunta “Em que sítio escreve?”, Lídia Jorge responde: “No Algarve, na casa da minha mãe. No sítio onde a minha avó amassava o pão”. É uma imagem caseira, de um tempo que passou. Mas é essa imagem que, ainda hoje, transmite segurança e paz à escritora. A avó a amassar o pão para a família.
O passado não volta. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Mas devemos ter consciência de que o progresso não traz só coisas boas e de que há sempre um preço a pagar. A escritora Maria Lamas, uma grande lutadora pelos direitos femininos, que também foi amiga do meu pai e esteve exilada em Paris ao mesmo tempo que ele, dizia que as mulheres tinham passado a ser “duplamente exploradas” – porque trabalhavam fora de casa e tinham de continuar a fazer em casa os mesmo trabalhos que faziam antes...
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Sem dúvida que esta é uma pergunta fundamental: as mulheres são mais felizes hoje? Ao se ler os comentários no site do Jornal Sol, e na página do Facebook, muito poucas mulheres responderam à pergunta de forma directa, preferindo dizer que "agora somos livres!", o que é falso.
Pode ser que as mulheres portuguesas sintam um misto de raiva e frustração por se aperceberem que foram enganadas com a canção da "liberdade", mas não queiram admitir isso sem perderem algo que elas valorizam. A raiva pode vir também do facto delas não saberem a quem acusar pela sua infelicidade.
Ninguém sabe, mas uma coisa é certa: a resposta à pergunta do autor do texto condena (ou valida) toda a experiência social com o nome de "feminismo".
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