Unico SENHOR E SALVADOR

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domingo, 3 de maio de 2015

Como a ascensão evangélica está mudando as relações sociais e políticas no país.



Depois de agitar o Congresso com bandeiras conservadoras empunhadas em nome do Senhor e ensaiar marchas militares com o exército dos Gladiadores do Altar, agora a cruzada evangélica chegou à novela das nove.

Se faltavam sinais para medir o tamanho da ascensão religiosa no país, o boicote que refreou os índices de audiência da global Babilônia indica que a escalada pentecostal chegou à sala de nossas casas. Sentou no sofá. E está mudando a programação.

A reação começou a partir de uma nota indignada lançada pela Frente Parlamentar Evangélica contra o beijo das atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, exibido no primeiro capítulo da trama, no dia 16 de março. O pastor Marco Feliciano, deputado e presidente da Assembleia de Deus, chegou a propor um boicote aos patrocinadores do folhetim, “que logo em seu primeiro capítulo esbofeteia a família brasileira com uma subliminar mensagem anticristã”, como registrou em seu Twitter.


Desde então, o que foi interpretado por muita gente apenas como um palavrório performático foi seguido de uma queda na audiência: dos 33 pontos na Grande São Paulo, na estreia, para uma média de 23 nas primeiras semanas, bem abaixo da média do horário. E levou os autores a modificar a trama, substituindo cenas de prostituição por trajetórias mais edificantes, na tentativa de resgatar o público conservador.

Coincidência ou não, no mesmo período, a novela Os Dez Mandamentos, da Rede Record, do bispo Edir Macedo, registrou um dos maiores índices de sua história, com 12 pontos no Ibope. Ao atingir uma tradição tão arraigada na cultura brasileira, a novela, o bloco pentecostal consagra um novo marco de sua crescente influência social.

Mas o que explica essa ascensão religiosa e como isso impacta as relações de poder?
Bom, para começar, é preciso retornar vários capítulos na nossa história.

O cientista político Cesar Romero Jacob, professor da PUC-Rio e um dos autores do Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil (PUC-Rio e Edições Loyola, 2003) chama a atenção para o fato de que não se trata de um fenômeno homogêneo. 

A proliferação de evangélicos no país se concentra historicamente nas fronteiras agrícolas e nas periferias metropolitanas. E isso nada tem de aleatório. A origem remete ao nosso processo de urbanização. Entre o início da I Guerra Mundial, em 1914, e a crise do petróleo de 1974, o Brasil muda progressivamente seu perfil, de rural para urbano.

Até então, os migrantes que saíam do campo apostavam no sonho de uma vida melhor na cidade. A partir do agravamento das crises econômicas, que fariam os anos 1980 ficarem conhecidos como “a década perdida”, as economias urbanas estagnaram enquanto o agronegócio deixou de precisar da mão de obra tradicional.

Isso fez com que a população rural passasse a ser expulsa do campo sem ter mais as luzes da cidade.

Em crise, os centros urbanos não conseguiam absorver tanta gente, e o resultado foi a favelização. Criaram-se aí, de acordo com o professor Jacob, as condições ideais para a entrada de um discurso de salvação trazido pelos pentecostais. O período coincide com o enfraquecimento da atuação da Igreja Católica na periferia — diante da decisão do Vaticano de centrar forças no combate ao comunismo na Europa do Leste.

Abandonados à própria sorte em lugares onde o Estado não chegava, sem moradia, sem emprego, sem saneamento básico, migrantes que romperam seus vínculos tradicionais para cair em selvas de pedra encontraram alento nas pregações inflamadas que prometiam prosperidade. Como resultado, o número de evangélicos no Brasil saltou de 6,6% da população, em 1980, para 22%, em 2010, conforme o IBGE.

Por outro lado, Jacob constata que, nos últimos 20 anos o ritmo de crescimento evangélico vem diminuindo, freado por conquistas sociais.

— O pentecostalismo cresce na miséria. Quando as políticas de inclusão e de educação começam a se fazer presente, há redução no crescimento — conclui.

O alastramento estatístico vem sendo amplificado simbolicamente pela atuação de pastores nos meios de comunicação e na política, que levantam questionamentos de para onde tanto fervor pode nos levar.

Mesmo com o ruído provocado por sucessivos projetos da bancada religiosa contra direitos dos homossexuais e das mulheres, por exemplo, a antropóloga Christina Vital, professora da Universidade Federal Fluminense e colaboradora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), avalia que os evangélicos são menos poderosos em termos de efetividade política do que aparentam.

Como exemplo, ela cita a candidatura do pastor Everaldo à Presidência, que alcançou menos de 1% dos votos na última eleição. E da própria Marina Silva, que mesmo sendo evangélica sequer chegou ao segundo turno.

— Olhar para o Congresso como se fosse a vitória da força conservadora não é verdade. A grande quantidade de projetos da bancada evangélica representa mais um modo de fortalecer seu capital político do que propriamente um avanço nas agendas conservadoras — pondera Christina.

Na sua avaliação, a militância conservadora é também uma reação a avanços sociais conquistados na sociedade, como as novas configurações familiares e sexuais. Por isso, refletiria o tensionamento da própria sociedade.

— Há um limite para o que está posto, não é uma coisa avassaladora — entende.
Pós-doutor em Sociologia da Religião, o professor da USP Ricardo Mariano concorda. Segundo ele, o perigo não mora na bancada evangélica em si, que foi eleita pelas regras democráticas e representa 15% do Congresso — com pouca força para aprovar projetos isoladamente.

O que lhe agrega força — e pode, sim, representar obstáculos preocupantes a avanços no campo dos direitos sociais e de minorias — é a sua associação com outros setores conservadores, num triunvirato que já vem sendo chamado de BBB, por unir as bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala — evangélicos, ruralistas e defensores da indústria de armamentos.

— Esse BBB está atuando junto, e aí sim a coisa é bem mais infernal. Mas não acredito que corremos qualquer risco de virar uma teocracia fundamentalista, não seremos talibãs evangélicos. A grande questão é a instrumentalização mútua entre religião e política — analisa Mariano.

A ascensão religiosa também suscita reflexões sobre ameaças ao Estado laico. Estaria a laicidade correndo risco? Para o professor de sociologia da religião Edin Sued Abumanssur, da PUC-SP, a questão costuma ser mal colocada. Na sua avaliação, é o próprio Estado laico que permite a competição entre as religiões — e a consequente disputa democrática na esfera política.

— Esse florescimento das religiões está diretamente associado ao fato de não haver mais uma única igreja com monopólio dos bens religiosos. Não existe mais um Estado para limitar, garantir um monopólio da religião. Antes a gente era católico por herança, agora existe concorrência — observa Abumanssur.

E as religiões sempre influenciaram o Estado, como lembra Marcelo Tadvald, doutor em antropologia social e pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde a época colonial, o cristianismo foi utilizado pelos governos, numa íntima associação com o poder.

Mesmo com a primeira Constituição, de 1891, que declarou a laicidade do Estado — por influência das elites, que queriam reduzir a influência do catolicismo nas instâncias do poder — a Igreja continuou representada. Por isso, olhando a história com uma lente mais alargada, Tadvald questiona a perspectiva de que estaria ocorrendo uma ascensão religiosa.

 Na sua avaliação, essa configuração apenas ganhou novas versões:
— O que ocorre hoje é uma troca do catolicismo pelos evangélicos. O traço cristão se mantém e se reatualiza pelos evangélicos, com mais visibilidade pela forma de atuação.
Em pleno século 21, o avanço da ciência não se traduziu em secularização, como no passado muitos imaginavam. O recrudescimento dos fenômenos religiosos no Brasil e em todo o mundo comprova que a busca pelo transcendente permanece. 

Para Alberto Moreira, doutor em teologia e em ciência das religiões, professor da PUC-Goiás, a crença de que a modernidade significaria o fim do mito do pensamento mágico se revelou uma falácia.
— A própria modernidade se tornou um mito, como se a ciência fosse salvar todas as angústias. O mundo se desencantou, mas reencantou outras práticas — analisa.

Em todo o mundo, a reafirmação da identidade pela religião seria também uma forma de resposta à globalização. Com vínculos sociais e territoriais cada vez mais frágeis na aldeia global, sentir-se parte de uma comunidade é mais do que nunca uma tábua de salvação. Moreira cita, por exemplo, o caso de imigrantes muçulmanos que moram na França, mas não são reconhecidos como franceses. O apego à tradição religiosa seria uma forma de garantir pertencimento.

— A globalização nos desterritorializou a todos. Nessa crise de referência, a religião permanece fonte para a construção da identidade — diz Moreira.
Mas as instituições tradicionais deixaram de ser as principais mediadoras, dando espaço a uma maior subjetividade. Isso faz com que seja mais fácil fiéis transitarem entre crenças como quem escolhe produtos num hipermercado da fé.

— Hoje cada um é gerente de seu próprio céu — define Moreira.
Numa era de tantas incertezas, nada mais vendável do que um produto que promete curar todos os males, trazer dinheiro e amor aos convertidos.

— A classe média gasta muito em terapia, a Igreja Católica exige muita penitência. Na Evangélica é mais fácil. Eles dizem que todo o pecado vem por alguém não aceitar Jesus. Mesmo que a pessoa tenha cometido crimes, é só aceitar Jesus e a pessoa zera o passado, vira a página — compara o professor Cesar Romero Jacob.

Seja em nome de qual crença, a fé continua movendo milhões. A seguir, cenas dos próximos capítulos.

Fonte: Zero Hora

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