“Aquilo que de pior existe em cada um, contribuiu alguma coisa para o bem comum.” (Bernard Mandeville)
Publicado em 1714 pela primeira vez e em 1723 numa versão mais completa, A Fábula das Abelhas,de Bernard Mandeville, causaria uma reação tamanha que vários pensadores importantes comentaram a obra e ainda o fazem. O outro título usado pelo autor foi Vícios Privados, Benefícios Públicos, o que já dá uma idéia melhor do seu conteúdo central. Mandeville defendia que aquilo entendido como vício pelos homens – como a ganância, inveja, vaidade e orgulho – era fundamental para a prosperidade da nação.
O desejo humano na busca do auto-interesse teria como conseqüência não intencional um caráter estabilizador para a sociedade. O “bem comum” não seria um produto da retidão das pessoas, de suas virtudes, mas sim dos seus vícios individuais. Mandeville tentou explicar a origem da moral como uma domesticação da mente selvagem. O comportamento dito moral teria surgido das reações de criaturas egoístas às opiniões de outros porque essas opiniões têm conseqüências tangíveis importantes ao seu próprio bem-estar. Para Mandeville, uma das maiores razões de por que tão poucas pessoas se compreendem é porque os escritores estão sempre ensinando como os homens deveriam ser, enquanto poucos se dão ao trabalho de mostrar como eles realmente são.
A Fábula conta, de forma irônica, como os vícios de cada abelha em particular eram vitais para a pujança econômica da colméia como um todo. No entanto, pregando como ideal as virtudes e condenando os vícios, as abelhas acabaram tendo seu pedido atendido, e seu deus colocou um fim nos vícios. Todos eram virtuosos agora. Mas não foi preciso muito tempo para que o desemprego começasse a surgir em larga escala, e a economia da colméia ficasse totalmente estagnada.
Mandeville pretende mostrar a importância dos vícios, mas deixa claro que, apesar destes serem inseparáveis das grandes sociedades, e que é impossível a riqueza sobreviver sem eles, os membros particulares da sociedade que são culpados de algum vício devem ser reprovados ou mesmo punidos quando viram crimes. Ou seja: se aceita que os vícios são a força motora do crescimento econômico, mas nem por isso deixa-se de combater seus excessos. O alvo de Mandeville era aparentemente os moralistas que pintavam o homem como anjos. Seu texto pode até ser visto como um reductio ad absurdum desse moralismo, mostrando como seria na prática uma sociedade habitada somente por “santos” que abdicam de seus próprios interesses, de sua ganância.
Um dos grandes pensadores que criticou a obra de Mandeville foi Adam Smith. Em Teoria dos Sentimentos Morais, ele diz: “O Dr. Mandeville considera que tudo o que se faz por senso de conveniência, por respeito ao que é recomendável e louvável, se faz por amor ao louvor e à aprovação, ou, como ele diz, por vaidade. Observa que o homem naturalmente está muito mais interessado em sua própria felicidade do que na de outros, e que é impossível, em seu foro íntimo, preferir realmente a prosperidade destes à sua própria. Quando aparenta preferir a de outros, podemos estar certos de que nos ludibria, e de que está agindo pelos mesmos motivos egoístas e todas as outras vezes. Dentre todas as suas outras paixões egoístas, a vaidade é uma das mais fortes, e sempre fica facilmente lisonjeado e intensamente deliciado com os aplausos dos que o rodeiam”.
Mas Adam Smith afirma que o desejo de fazer o que é honroso e nobre, de nos convertermos em objetos apropriados de estima e aprovação, não pode ser chamado de vaidade. O amor à verdadeira glória, segundo Adam Smith, é diferente da paixão da vaidade simples, pois é uma paixão “justa, razoável e eqüitativa, enquanto a outra é injusta, absurda e ridícula”. Ele explica: “O homem que deseja estima por algo realmente estimável nada mais deseja senão aquilo a que com justiça tem direito, e aquilo que não lhe pode ser recusado sem que se cometa alguma espécie de ofensa”. Nesse sentido, até o que finge merecer estima está reconhecendo o que é estimável. A frase de La Rochefoucauld expressa com perfeição isso: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.
Adam Smith coloca o dedo no nervo da questão: “É a grande falácia do livro do Dr. Mandeville representar cada paixão como inteiramente viciosa, em qualquer grau de sentido. É assim que trata como vaidade tudo o que guarde alguma referência com o que são ou deveriam ser os sentimentos alheios; e é por meio desse sofisma que estabelece sua conclusão favorita, de que vícios privados são benefícios públicos”. No entanto, após a mordida, o filósofo escocês assopra, afirmando que “por mais destrutivo que esse sistema possa parecer, jamais poderia ter ludibriado tão grande número de pessoas, nem provocado um alarma tão generalizado entre os amigos dos melhores princípios, se não tivesse em alguns aspectos bordejado a verdade”.
Hayek foi um dos grandes pensadores modernos que resgatou a obra de Mandeville. Um dos pontos mais importantes que merece ser destacado é o fato de que ações individuais geram resultados não intencionais. Não é preciso chegar ao ponto de defender vícios como virtudes, pois basta reconhecer que ações voltadas para a própria felicidade podem acarretar em bem-comum. Mas nada impede que esses indivíduos sejam virtuosos, seguindo um parâmetro ético de comportamento. A ética lida com aquilo que pode ser, diferente daquilo que é. Falar em ética é falar em escolha individual.
Como diz Eduardo Giannetti, em seu livro Vícios Privados, Benefícios Públicos?, “as regras do jogo e a qualidade dos jogadores são os dois elementos essenciais de qualquer sistema econômico”. Giannetti acredita que é uma “ilusão supor que o auto-interesse dentro da lei é tudo o que o mercado precisa para mostrar do que ele é capaz na criação de riqueza”. Afinal, “nenhum ordenamento moral conseguiria manter-se baseado apenas na imposição, por parte da autoridade estatal, de leis coercitivas sobre um conjunto de indivíduos isolados e recalcitrantes”. O medo não basta. A punição não é suficiente. O caráter da população importa. O capital humano é fundamental. A confiança mútua facilita muito. A ética conta. Como disse Benjamin Disraeli, “quando os homens são puros, as leis são inúteis; quando os homens são corruptos, as leis são quebradas”.
Isso não quer dizer, de forma alguma, que a tentativa de se “corrigir” a natureza humana, imposta de cima para baixo, seja desejável. O século XX já mostrou com os horrores do nazismo e comunismo o que a “engenharia” do caráter faz. David Hume já havia alertado que “todos os planos de governo que pressupõem uma grande reforma na conduta da humanidade são claramente fantasiosos”. Isso não nos impede, entretanto, de buscar enaltecer as virtudes humanas num ambiente de liberdade individual. Para Giannetti, seria a volta do senso comum: “virtudes privadas, benefícios públicos”.
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