“Ora”, você talvez diga, “combater o mal e a injustiça no mundo é uma coisa, mas mandar gente para o inferno é outra. A Bíblia fala de punição eterna. Como isso pode ser compatível com o amor de Deus? Não consigo aceitar nem sequer a ideia de inferno com um Deus de amor”. Como lidar com essa objeção compreensível?
O indivíduo moderno acha inevitavelmente que o inferno funciona assim: Deus nos dá um tempo, mas se não fizermos as escolhas corretas até o final da vida, ele condena nossa alma ao inferno por toda a eternidade. Enquanto despenca no espaço, a pobre alma implora piedade, mas Deus lhe diz: “Tarde demais! Você teve sua oportunidade! Agora vai sofrer!”.
Essa caricatura interpreta de modo equivocado a própria natureza do mal. A imagem bíblica é que o pecado nos afasta da presença de Deus, que é a fonte de toda a alegria e, com efeito, de todo amor, de toda sabedoria e de todo tipo de coisas boas.
Como no início fomos criados para estar próximos de Deus, só diante de sua face crescemos, florescemos e realizamos plenamente nosso potencial. Perder por completo sua presença é o inferno – a perda de nossa capacidade de dar ou receber amor ou alegria.
Uma imagem comum do inferno na Bíblia é o fogo.1 O fogo desintegra. Mesmo nesta vida somos capazes de ver a desintegração da alma causada pelo egocentrismo.
Uma imagem comum do inferno na Bíblia é o fogo.1 O fogo desintegra. Mesmo nesta vida somos capazes de ver a desintegração da alma causada pelo egocentrismo.
Sabemos como o egoísmo e o narcisismo levam à amargura aguda, à inveja nauseante, à ansiedade que paralisa, aos pensamentos paranoicos e às negações e distorções mentais que acompanham tudo isso. Faça agora a si mesmo a seguinte pergunta: “E se quando morrermos não desaparecermos, se nossa vida continuar eternamente?”. O inferno, assim, é a trajetória de uma alma que leva uma vida narcisista e autocentrada para todo o sempre.
A parábola de Jesus sobre o rico e Lazáro em Lucas 16 respalda a noção de inferno aqui apresentada. Lázaro é um homem pobre que mendiga no portão de um rico cruel. Ambos morrem, e Lázaro vai para o céu, ao passo que o rico vai para o inferno. De lá, o rico vê Lázaro no céu, “junto de Abraão”.
“E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim e envia-me Lázaro para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, pois estou atormentado nestas chamas. Abraão, porém, disse: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste bens, mas Lázaro, por sua vez, recebeu males; agora ele aqui é consolado, e tu, atormentado. Além disso, há um grande abismo entre nós e vós, de forma que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os daí passar para nós.
A parábola de Jesus sobre o rico e Lazáro em Lucas 16 respalda a noção de inferno aqui apresentada. Lázaro é um homem pobre que mendiga no portão de um rico cruel. Ambos morrem, e Lázaro vai para o céu, ao passo que o rico vai para o inferno. De lá, o rico vê Lázaro no céu, “junto de Abraão”.
“E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim e envia-me Lázaro para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, pois estou atormentado nestas chamas. Abraão, porém, disse: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste bens, mas Lázaro, por sua vez, recebeu males; agora ele aqui é consolado, e tu, atormentado. Além disso, há um grande abismo entre nós e vós, de forma que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os daí passar para nós.
Então ele disse: Eu te imploro, ó pai, que o mandes à família de meu pai, porque tenho cinco irmãos. Manda-o para os advertir, a fim de que eles também não venham para este lugar de tormento. Abraão lhe disse: Eles têm Moisés e os Profetas; que os ouçam. Ele respondeu: Não, pai Abraão! Se alguém dentre os mortos for falar com eles, irão se arrepender.
Abraão, porém, lhe disse: Se não ouvem Moisés nem os Profetas, tampouco acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dentre os mortos” (Lc 16.24-31).
O impressionante é que mesmo diante da inversão de situações, o rico parece cego ao que está acontecendo. Ele ainda espera que Lázaro seja seu servo e o trata como menino de recados. Ele não pede para sair do inferno, mas dá a entender claramente que Deus nunca lhe deu, nem à sua família, informações suficientes sobre a vida após a morte.
O impressionante é que mesmo diante da inversão de situações, o rico parece cego ao que está acontecendo. Ele ainda espera que Lázaro seja seu servo e o trata como menino de recados. Ele não pede para sair do inferno, mas dá a entender claramente que Deus nunca lhe deu, nem à sua família, informações suficientes sobre a vida após a morte.
Comentaristas observam a incrível dose de negação, de transferência de culpa e de cegueira espiritual nesta alma no inferno. Observam ainda que o rico, ao contrário de Lázaro, jamais é citado pelo nome, mas chamado apenas de “homem rico”, insinuando nitidamente que já que sua identidade se apoiava na riqueza e não em Deus, uma vez perdida a riqueza, perde-se toda a noção de identidade.
Em resumo, o inferno é a escolha voluntária de uma identidade separada de Deus numa trajetória rumo à eternidade. Vemos esse processo “em pequena escala” nos viciados em drogas, álcool, jogo e pornografia. Primeiro ocorre a desintegração, pois, conforme o tempo passa, o indivíduo precisa cada vez mais daquilo em que se viciou para conseguir a mesma sensação, o que conduz a uma satisfação cada vez menor.
Em resumo, o inferno é a escolha voluntária de uma identidade separada de Deus numa trajetória rumo à eternidade. Vemos esse processo “em pequena escala” nos viciados em drogas, álcool, jogo e pornografia. Primeiro ocorre a desintegração, pois, conforme o tempo passa, o indivíduo precisa cada vez mais daquilo em que se viciou para conseguir a mesma sensação, o que conduz a uma satisfação cada vez menor.
Depois, vem o isolamento, à medida que o viciado culpa cada vez mais os outros e as circunstâncias a fim de justificar seu comportamento. “Ninguém entende! Estão todos contra mim!” é a queixa pronunciada com uma dose cada vez maior de autopiedade e egocentrismo. Quando construímos nossa vida com base em outra coisa que não seja Deus, essa coisa – apesar de boa – transforma-se em um vício que escraviza.
A desintegração pessoal ocorre em uma escala mais ampla. Na eternidade, tal desintegração prossegue indefinidamente. Crescem o isolamento, a negação, a ilusão e auto-obsessão. Quando se perde por completo a humildade, perde-se o contato com a realidade. Ninguém jamais pede para sair do inferno. A própria ideia de céu passa a parecer tapeação.
Em sua alegoria The great divorce,2 C. S. Lewis descreve um ônibus cheio de gente que, vindo do inferno, chega à fronteira com o céu. Os passageiros são instados a deixar para trás os pecados que os condenaram ao inferno, mas se recusam a fazê-lo. As descrições das personagens são impressionantes, pois nelas reconhecemos o autoengano e o narcisismo presentes em “pequena escala” em nossos próprios vícios.3
O inferno começa com um humor ranzinza, sempre queixoso, sempre imputando culpa aos outros […] mas você ainda consegue se distinguir no meio disso, pode até criticar esse comportamento em si mesmo e desejar livrar-se dele. No entanto, talvez chegue o dia em que isso já não seja possível. Então, não existirá mais este você para criticar o humor ou até para desfrutá-lo, restando apenas as queixas, repetidas indefinidamente como uma máquina.
Em sua alegoria The great divorce,2 C. S. Lewis descreve um ônibus cheio de gente que, vindo do inferno, chega à fronteira com o céu. Os passageiros são instados a deixar para trás os pecados que os condenaram ao inferno, mas se recusam a fazê-lo. As descrições das personagens são impressionantes, pois nelas reconhecemos o autoengano e o narcisismo presentes em “pequena escala” em nossos próprios vícios.3
O inferno começa com um humor ranzinza, sempre queixoso, sempre imputando culpa aos outros […] mas você ainda consegue se distinguir no meio disso, pode até criticar esse comportamento em si mesmo e desejar livrar-se dele. No entanto, talvez chegue o dia em que isso já não seja possível. Então, não existirá mais este você para criticar o humor ou até para desfrutá-lo, restando apenas as queixas, repetidas indefinidamente como uma máquina.
Não se trata de “sermos mandados” por Deus para o inferno. Em cada um de nós existe algo que está crescendo, que virá a SER o inferno, a menos que o cortemos pela raiz.4
Os seres no inferno sofrem, mas Lewis nos mostra por quê. Tão destruidoras quanto chamas incontroláveis, vemos sua arrogância, sua paranoia, a autopiedade e a certeza de que todos os outros estão errados, todos os outros são idiotas!
Os seres no inferno sofrem, mas Lewis nos mostra por quê. Tão destruidoras quanto chamas incontroláveis, vemos sua arrogância, sua paranoia, a autopiedade e a certeza de que todos os outros estão errados, todos os outros são idiotas!
A humildade se perdeu por completo, assim como a sanidade. Eles estão encarcerados para sempre na prisão do egocentrismo, e seu orgulho cresce aos poucos até se tornar uma nuvem em forma de cogumelo cada vez maior. Para sempre continuarão a se despedaçar, culpando qualquer um que não seja eles mesmos. Em grande escala, isso é o inferno.
Portanto, a imagem de Deus lançando seres humanos em um abismo onde eles imploram: “Sinto muito, me deixe sair!” não passa de uma imagem caricata. Os passageiros do ônibus do inferno na parábola de Lewis preferem ficar com sua “liberdade”, conforme eles próprios definem, a obter a salvação. Têm a ilusão de que, se glorificassem a Deus, de alguma forma perderiam poder e liberdade, mas em uma suprema e trágica ironia, a escolha que fizeram arruinou o potencial de grandeza que detinham.
Portanto, a imagem de Deus lançando seres humanos em um abismo onde eles imploram: “Sinto muito, me deixe sair!” não passa de uma imagem caricata. Os passageiros do ônibus do inferno na parábola de Lewis preferem ficar com sua “liberdade”, conforme eles próprios definem, a obter a salvação. Têm a ilusão de que, se glorificassem a Deus, de alguma forma perderiam poder e liberdade, mas em uma suprema e trágica ironia, a escolha que fizeram arruinou o potencial de grandeza que detinham.
O inferno, como diz Lewis, é “o maior monumento à liberdade humana”. Como se lê em Romanos 1.24, Deus “os entregou […] ao desejo […] de seus corações”. No final, Deus está apenas concedendo aos seres humanos o que eles mais desejam, incluindo a liberdade em relação a ele próprio. O que poderia ser mais justo? Lewis escreve:
Existem apenas dois tipos de indivíduos – os que dizem a Deus “seja feita a vossa vontade” e aqueles a quem Deus diz no fim “seja feita a vossa vontade”. Todos os que estão no inferno escolheram estar lá. Sem esse livre arbítrio não haveria inferno. Uma alma que, com seriedade e constância, deseje a alegria jamais deixará de tê-la.5
_________________
NOTAS:
1. Todas as descrições e imagens de céu e inferno na Bíblia são simbólicas e metafóricas. Cada metáfora indica um aspecto da experiência do inferno (por exemplo, “fogo” subentende desintegração, ao passo que “trevas” nos falam de isolamento). Isso não implica de forma alguma que o céu e o inferno em si mesmos sejam “metáforas”.
Existem apenas dois tipos de indivíduos – os que dizem a Deus “seja feita a vossa vontade” e aqueles a quem Deus diz no fim “seja feita a vossa vontade”. Todos os que estão no inferno escolheram estar lá. Sem esse livre arbítrio não haveria inferno. Uma alma que, com seriedade e constância, deseje a alegria jamais deixará de tê-la.5
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NOTAS:
1. Todas as descrições e imagens de céu e inferno na Bíblia são simbólicas e metafóricas. Cada metáfora indica um aspecto da experiência do inferno (por exemplo, “fogo” subentende desintegração, ao passo que “trevas” nos falam de isolamento). Isso não implica de forma alguma que o céu e o inferno em si mesmos sejam “metáforas”.
Eles são reais. Jesus subiu (com seu corpo físico, não esqueça) ao céu. A Bíblia afirma claramente que céu e inferno são realidades, mas também indica que a linguagem que os descreve é alusiva, metafórica e parcial.
2. Edição em português: O grande abismo, tradução de Ana Schäffer (São Paulo: Vida, 2006).
3. Veja mais detalhes sobre a semelhança do pecado com o vício em Cornelius Plantinga, “The tragedy of addiction” (cap. 8), in: Not the way it’s supposed to be: a breviary of sin (Eerdmans, 1995).
4. Compilação de citações de Lewis a partir de três fontes: Mere Christianity (Macmillan, 1964), p. 59 [edição em português: Cristianismo puro e simples, tradução de Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla (São Paulo: Wmfmartinsfontes, 2009)]; The great divorce (Macmillan, 1963), p. 71-2 [edição em português: O grande abismo, tradução de Ana Schäffer (São Paulo: Vida, 2006)]; “The trouble with X”, in: God in the dock: essas on theology and ethics (Eerdmans, 1970), p. 155.
5. Extraído de C. S. Lewis, The problem of pain (Macmillan, 1961), p. 116 [edição em português: O problema do sofrimento, tradução de Alípio Franca (São Paulo: Vida, 2006)]; The great divorce (Macmillan, 1963), p. 69.
2. Edição em português: O grande abismo, tradução de Ana Schäffer (São Paulo: Vida, 2006).
3. Veja mais detalhes sobre a semelhança do pecado com o vício em Cornelius Plantinga, “The tragedy of addiction” (cap. 8), in: Not the way it’s supposed to be: a breviary of sin (Eerdmans, 1995).
4. Compilação de citações de Lewis a partir de três fontes: Mere Christianity (Macmillan, 1964), p. 59 [edição em português: Cristianismo puro e simples, tradução de Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla (São Paulo: Wmfmartinsfontes, 2009)]; The great divorce (Macmillan, 1963), p. 71-2 [edição em português: O grande abismo, tradução de Ana Schäffer (São Paulo: Vida, 2006)]; “The trouble with X”, in: God in the dock: essas on theology and ethics (Eerdmans, 1970), p. 155.
5. Extraído de C. S. Lewis, The problem of pain (Macmillan, 1961), p. 116 [edição em português: O problema do sofrimento, tradução de Alípio Franca (São Paulo: Vida, 2006)]; The great divorce (Macmillan, 1963), p. 69.
Phonte: Púlpito Cristão
Muito bom o texto!Parabéns!!!
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